A propósito da festa litúrgica do Sagrado Coração de Jesus e dos 350 anos das aparições a Santa Margarida Maria Alacoque, partilhamos este texto como parte de uma proposta mais alargada para redescobrir aspetos centrais da espiritualidade do Coração de Jesus — um verdadeiro tesouro para toda a Igreja.
A missão de Deus
No mundo e na Igreja, falamos muitas vezes de “missão”. A palavra pode significar: tarefas, prioridades, áreas de trabalho ou objetivos (pastorais ou empresariais). Mas a Sagrada Escritura propõe algo mais profundo: Deus não “tem” apenas uma missão — Ele é missão. O coração de Deus está em constante movimento de saída, de doação, de encontro. A missão não é apenas um plano, é uma forma de ser. É o modo como Deus, que é amor, Se manifesta ao mundo.
Quando viu o sofrimento do povo no Egito, Deus disse a Moisés: “Vi a miséria do meu povo… ouvi o seu clamor… desci para o libertar” (cf. Ex 3,7-10). Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus, vendo e ouvindo, enviou o Seu Filho e o Seu Espírito (cf. Lc 1, 35) para uma nova libertação. Deus começa por ver, ouvir, dialogar — e só depois agir. É assim que o Criador se faz próximo. Este dinamismo (ver, ouvir, agir), todo ele missionário, pode resumir-se em três pontos: (1) Deus abre um diálogo, (2) dirige-se à liberdade humana e (3) envolve todo o seu ser — sem pausas, sem “horário de expediente”. Foi isto que o Papa Paulo VI recordou na encíclica Ecclesiam Suam:
“O diálogo da salvação partiu da caridade, da bondade divina: ‘Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito’ (Jo 3,16). Nada, senão o amor fervoroso e desinteressado, deve despertar o nosso. O diálogo da salvação não se proporcionou aos méritos dos interlocutores convidados… também o nosso diálogo deve ser sem limites nem cálculos.” (ES 42)
O diálogo que transforma
Este diálogo chega à sua expressão mais pessoal e concreta na vida de Santa Faustina Kowalska. Nascida em 1905, na Polónia, Faustina cresceu numa família pobre e trabalhou vários anos como empregada doméstica. Um dia, após um baile, teve um encontro decisivo com Jesus. Na catedral de Santo Estanislau Kostka, Faustina sentiu o apelo a deixar tudo pelo Evangelho e entrar num convento.
No convento, Jesus revelou-lhe o Seu coração. Mas agora já não era apenas um apelo à “reparação” do coração ferido pelos pecados da humanidade. O que emergia era algo mais: o desejo de ter um coração semelhante ao de Cristo. Faustina não rezava apenas para consolar Jesus, mas para se deixar transformar por Ele. O diálogo com o Coração misericordioso de Cristo tornava-se caminho de semelhança, de transformação. O que Deus lhe dava a conhecer não era apenas uma doutrina ou um conjunto de práticas, mas o próprio mistério do Seu coração — cheio de misericórdia por todos.
Como escreveu no seu Diário:
“Ó Jesus, compreendo que a Vossa misericórdia é inexprimível. Por isso Vos suplico: tornai o meu coração tão grande que possa conter as necessidades de todas as almas que vivem na face da terra… Ó meu Jesus, sei que Vós procedeis conosco como nós procedemos com o próximo. Meu Jesus, fazei o meu coração semelhante ao Vosso misericordioso Coração.” (Diário, 692)
É neste diálogo — cor ad cor loquitur, coração a coração — que o ser humano reencontra a imagem de Deus em si. A semelhança com o Coração de Cristo não nos aliena: diviniza-nos precisamente porque nos humaniza.
É neste diálogo — cor ad cor loquitur, coração a coração — que o ser humano reencontra a imagem de Deus em si. A semelhança com o Coração de Cristo não nos aliena: diviniza-nos precisamente porque nos humaniza.
Semelhança com Cristo no mundo
Com Santa Faustina, a espiritualidade do Coração de Jesus ganhou uma nova tonalidade. Já não se falava apenas de “reparar” um coração ferido, mas de pedir a Deus que torne o nosso coração “manso e humilde” como o Seu — na linha das bem aventuranças. Esta confiança total na misericórdia gratuita de Deus revela o fascínio pelo modo como Cristo ama, cura e levanta. Trata-se de uma espiritualidade profundamente apostólica, porque quem se deixa tocar pelo Coração de Cristo torna-se apóstolo — não tanto pelo que faz, mas pelo que é.
Deixar-se tocar por este Coração é aceitar ser transformado, não por esforço ou reflexão em primeira instância, mas pela proximidade de um Tu diante do qual eu me descubro um tu infinitamente amado. Da proximidade, deste Tu a tu, brotará a semelhança. E esta semelhança — humilde, gratuita, compassiva —, por gerar novas formas de relação com os irmãos, consigo mesmo e com a criação, é em si mesma: missão.
Deixar-se tocar por este Coração é aceitar ser transformado, não por esforço ou reflexão em primeira instância, mas pela proximidade de um Tu diante do qual eu me descubro um tu infinitamente amado.
Ora, é pelo Espírito Santo que Deus se mostra próximo, se manifesta ao nosso coração como aquele que nos visita como um Tu. Daí que o Papa S. João Paulo II tenha afirmado com tanta simplicidade que “o Coração de Cristo é a obra prima do Espírito Santo”. (Angelus, 23 de junho de 2002) É no Espírito que o coração de Deus se torna presente ao nosso presente, apresentando-Se ao nosso coração como um Tu, por meio de Cristo vivo e presente. Por isso, à luz desta ação do Espírito que nos permite experimentar Deus como um Tu confiável e amável, podemos parafrasear a famosa oração do Patriarca Atenágoras de Atenas, substituindo o nome do Espírito pela confiança no Tu que Ele nos dá a experimentar e dizer:
Sem essa surpresa de saber-se visitado por um Tu infinito:
Deus parece distante,
Cristo fica no passado,
O Evangelho é apenas um texto,
A Igreja, uma instituição,
A autoridade, um peso,
A missão, uma estratégia,
A oração, uma repetição vazia,
O agir cristão, uma obrigação de escravos.
Mas com esse Tu que nos ama como um tu:
O mundo torna-se espaço do Reino,
O ser humano luta com esperança contra o que o prende e reduz,
Cristo ressuscitado está vivo e presente,
O Evangelho é força e vida,
A Igreja é comunhão viva que vem de Deus,
A autoridade torna-se serviço que liberta,
A missão é Pentecostes,
A oração é memória e antecipação do Céu,
E o nosso agir é transformado em dom de Deus.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.