Trágica Síria

Meio milhão de mortos depois de ter começado o conflito, talvez não devesse ser tabu discutir se a Síria pós-guerra civil é viável. Se os ódios entre as suas comunidades não se tornaram inultrapassáveis depois destes sete anos de violência.

Meio milhão de mortos depois de ter começado o conflito, talvez não devesse ser tabu discutir se a Síria pós-guerra civil é viável. Se os ódios entre as suas comunidades não se tornaram inultrapassáveis depois destes sete anos de violência.

Sete anos depois de a guerra civil ter começado na Síria começa a vislumbrar-se finalmente um lado vencedor: o do regime presidido por Bachar Al-Assad. Ora, Al-Assad, que sucedeu ao falecido pai em 2000 como líder sírio, deve esse provável triunfo ao apoio militar da Rússia e do Irão, assim como do Hezbollah libanês e de uma série de milícias xiitas vindas de tão próximo como o Iraque mas também de tão longe como o Afeganistão. Porém, de certa forma, Al-Assad também ganha porque a oposição nunca se mostrou unida e os seus patrocinadores externos, dos Estados Unidos até à Turquia, revelaram sempre ter interesses próprios prioritários e contraditórios.

Foi a desumanidade do regime na reação aos protestos democráticos inspirados na Primavera Árabe iniciada meses antes na Tunísia que transformaram em 2011 uma contestação pacífica numa rebelião armada. Pertencente à minoria alauita, um ramo minoritário do islão xiita, a família  Al-Assad governou durante três décadas com Hafez e já vai em quase duas com Bachar. Contestados sobretudo pela maioria árabe sunita, cerca de dois terços da população síria pré-guerra, os Al-Assad eram vistos como os protetores pela sua própria comunidade, assim como pelas outras minorias, incluindo as cristãs. Também gozavam de alguma popularidade nas elites sunitas de Damasco e Aleppo por garantirem estabilidade e uma relativa prosperidade.

A emergência do Estado Islâmico a partir de 2014, com a sua barbárie mediatizada, acentuou ainda mais a necessidade de proteção por parte das minorias, conscientes de que no passado só viveram tranquilas quando os sultões otomanos reinavam ou, depois, quando no poder em Damasco estava um ditador laico. Uma realidade trágica semelhante à do vizinho Iraque, que também fez parte do Império Otomano, ou da ex-Jugoslávia, que até à Primeira Guerra Mundial pertenceu ao Império Austro-Húngaro.

Herdeira longínqua do califado omíeda, uma das eras douradas da civilização islâmica, a Síria libertou-se dos turcos no final da Primeira Guerra Mundial para logo de seguida ficar sob domínio dos franceses, que partiram por sua vez em 1946. Os colonizadores europeus arrancaram, porém, à Síria histórica um território no litoral onde havia uma maioria de cristãos, criando assim o Líbano.

Mesmo amputada, a Síria independente manteve uma notável diversidade de comunidades. E se em vésperas da guerra civil, dois terços dos 22 milhões de habitantes eram árabes sunitas, ramo principal do islão,  comunidades como os curdos, os drusos, os alauitas e as diversas denominações cristãs também faziam parte do mosaico étnico e religioso. Uma referência ainda aos yazidis, especialmente perseguidos pelos jihadistas do Estado Islâmico, que nas zonas que controlavam na Síria e no Iraque ameaçavam também os cristãos, exigindo a sua conversão ao islão.

Turquia e Arábia Saudita cedo apostaram no derrube de Al-Assad, ao mesmo tempo que o Irão se mobilizou para defender o aliado. Israel, tradicional inimigo da Síria, observa até agora à distância, mas intervindo sempre que considera os seus interesses ameaçados, basta pensar em transferências de armamento para o Hezbollah. Já os Estados Unidos mostram um comportamento errático, ora exigindo a saída de Al-Assad ora não. Dir-se-ia que depois de herdar de George W. Bush guerras inacabadas no Afeganistão e no Iraque, o presidente Barack Obama preferiu ser cauteloso. E a ameaça jihadista acabou por marcar as prioridades dos Estados Unidos (também do Reino Unido e da França) até hoje, com o travar o jihadismo a ser mais importante do que construir uma alternativa plausível a Al-Assad. Depois, a intervenção russa fez pender de vez a balança para o lado do regime, com o presidente russo Vladimir Putin a vir em auxílio de um aliado no Médio Oriente que data do tempo da União Soviética e de Al-Assad pai.

Sucessor de Obama, Donald Trump também não foi capaz de ter um plano A para a Síria e dois ataques com mísseis, um em abril de 2017 e outro agora, para punir o regime pelo uso de armas químicas, não alteram nada o quadro geral a favor de Al-Assad. Falta uma alternativa ao regime e também vontade de desafiar a Rússia para um braço de ferro de alto risco. Além disso, os americanos, que tem algumas tropas especiais no terreno, têm ainda de resolver o diferendo com a Turquia, parceiro na NATO, sobre o papel dado às milícias curdas. Os americanos veem os curdos da Síria como tropas de confiança no ataque aos jihadistas, Estado Islâmico e filiais da Al-Qaeda incluídas. Mas para a Turquia as milícias curdas sírias são apenas uma fachada para o PKK, grupo considerado terrorista pelos Estados Unidos e pela União Europeia e que faz guerra separatista no leste turco. Para prevenir os curdos sírios de criarem um embrião de Estado no norte, como fizeram no Iraque há três décadas, o exército turco, com auxílio de grupos rebeldes anti-Al-Assad, domina neste momento parcelas do território sírio.

Ora, a tal vitória próxima de Al-Assad nunca será, pois, total. Falta-lhe meios humanos e materiais para dominar alguns bastiões rebeldes, e até às zonas curdas que sempre evitaram confundir-se com a oposição ao regime mas autogovernam-se desde 2011. E não tem força, mesmo com a proteção da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, para expulsar as potências hostis que se instalaram no terreno. É difícil também imaginar como reconstruirá o país sem apoio financeiro ocidental, ou como promoverá o regresso dos seis milhões de refugiados.

Porém, todos os lados, com exceção dos curdos, falam de defesa da Síria unida, só discordando sobre se Al-Assad deve liderá-la. Para uns é um herói, resistente a uma rebelião com tonalidades jihadistas, para outros um carniceiro que se mantém no poder graças ao apoio externo. Mas meio milhão de mortos depois, talvez não devesse ser tabu discutir se a Síria pós-guerra civil é viável. Se os ódios entre as suas comunidades não se tornaram inultrapassáveis depois destes sete anos de violência. Se os vizinhos vão aceitar retirar.

As fronteiras atuais do Médio Oriente foram feitas pelos britânicos e pelos franceses há um século. Talvez não tenham de ser tão sagradas que para as manter se eternizem conflitos. Mas discutir todas as opções não implica que se desista do ideal de convivência étnica e religiosa na região. É trágica a Síria.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.