Este texto foi inicialmente publicado na revista La Civiltà Cattolica, 2023 – IV, pp. 276-289.
De 2 a 6 de Agosto o Papa esteve em Portugal, na Jornada Mundial da Juventude. Foram dias inesquecíveis de palavras inspiradas e multidões entusiasmadas. Quando o Papa regressou ao Vaticano, deixou atrás de si uma onda de alegria, de fé e de esperança absolutamente extraordinárias. Mas também deixou algumas questões que pedem um aprofundamento posterior.
- Todos têm lugar na Igreja
Uma das questões a aprofundar tem a ver com a insistência do Papa que a Igreja é para todos, que todos têm lugar nela.
Logo no dia da sua chegada, nas Vésperas a que presidiu no Mosteiro dos Jerónimos, o Papa dizia:
Na barca da Igreja, deve haver lugar para todos: todos os batizados são chamados a subir para ela e lançar as redes, empenhando-se pessoalmente no anúncio do Evangelho. E não vos esqueçais desta palavra: todos, todos, todos. Quando tenho de falar sobre o modo como abrir perspetivas apostólicas, toca-me muito aquela passagem do Evangelho em que os convidados se recusam a ir à festa de núpcias do filho quando já está tudo preparado. Que diz então o senhor, o senhor que preparou a festa? «Saiam pelas periferias e tragam todos, todos, todos, todos: sãos, doentes, crianças e adultos, bons e pecadores. Todos» Que a Igreja não seja uma alfândega para selecionar quem entra e quem não entra. Todos, cada um com a sua vida às costas, com os seus pecados, assim como é diante de Deus, como é diante da vida… Todos. Todos. Não levantemos alfândegas na Igreja. Todos. (nota 2)
No dia seguinte, na cerimónia de acolhimento no Parque Eduardo VII, o Papa insistia na mesma ideia:
Amigos, quero ser claro convosco, que sois alérgicos à falsidade e às palavras vazias: na Igreja há espaço para todos. Para todos. Na Igreja, ninguém é de sobra. Nenhum está a mais. Há espaço para todos. Assim como somos. (…) «Padre, mas para mim que sou um desgraçado, que sou uma desgraçada, também há lugar?» Há espaço para todos! Todos juntos… Peço a cada um que, na própria língua, repita comigo: «Todos, todos, todos». Não se ouve; outra vez! «Todos, todos, todos». (nota 3)
Este ensinamento do Papa Francisco não é novo. Já em 2013, o primeiro ano do seu pontificado, na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, o Papa escrevia:
Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa. (nota 4)
Que Deus quer acolher a todos é uma verdade de fé. Nenhum cristão pode pôr em causa o acolhimento universal e incondicional do coração de Deus sem primeiro ter de rasgar muitas páginas do Evangelho. A mensagem evangélica não podia ser mais clara: Deus não põe condições para nos acolher. Pense-se, por exemplo, no caso de Zaqueu. Jesus não lhe pediu absolutamente nada como condição prévia a ficar em sua casa. Foi só depois, como fruto do encontro com Jesus, que Zaqueu decidiu fazer as mudanças de vida que devia fazer. E então aí Jesus confirmou a sua decisão e alegrou-se: “Hoje veio a salvação a esta casa!” (nota 5)
2. Relativismo?
A insistência de uma Igreja aberta a todos rapidamente levantou uma questão de fundo: na prática pastoral, o que é que isto quer dizer? Que se deve dar a comunhão a todas as pessoas, mesmo que estejam em situação conjugal irregular? Que a Igreja deve aceitar as uniões homossexuais tal como aceita as heterossexuais? Num mundo ocidental relativista, a Igreja parecia ser o último bastião de certo tipo de valores e distinções. Mas – afinal – o relativismo também entrou na Igreja Católica?
Rapidamente surgiram inquietações como esta na mente de alguns católicos. Mas então agora somos iguais ao resto da sociedade para quem tudo vale? É tudo igual? Onde fica a exigência do Evangelho?
3. Duas clarificações
Quando o Papa fala do acolhimento de “todos” não se está a referir, em particular aos recasados civilmente depois da ruptura de um matrimónio sacramental ou aos homossexuais. A preocupação do Papa é muito mais vasta: “todos” significa os pobres, os que se sentem pecadores, os sãos e os doentes e todos aqueles que, por qualquer razão, não se sentem dignos de entrar numa igreja.
A segunda clarificação é importante e o Papa deu-a no avião ao regressar a Roma, na tradicional conferência de imprensa. Uma coisa é que todos devam ser acolhidos na Igreja; outra coisa é o modo como cada comunidade deve acolher cada pessoa. O Papa diz que a Igreja tem de acolher mas não explicita o modo como isso será feito em cada caso.
Nesta conferência de imprensa, uma jornalista alemã confrontou o Santo Padre dizendo: “Santo Padre, em Lisboa disse-nos que na Igreja há espaço para `todos, todos, todos´”. A Igreja está aberta a todos, mas ao mesmo tempo nem todos têm os mesmos direitos e oportunidades, no sentido que, por exemplo, mulheres e homossexuais não podem receber todos os Sacramentos.” Na sua resposta (que merece ser lida na íntegra), o Papa esclarece:
A Igreja está aberta para todos e, depois, há legislações que regulam a vida dentro da Igreja e, quem está dentro, atém-se à legislação… Venham todos e depois cada qual, na oração, em conversa íntima com Deus, no diálogo pastoral com os agentes de pastoral, procura o modo de avançar. (nota 6)
Portanto, o Papa não disse (nem pensa) que este acolhimento universal signifique, por exemplo, que se deva dar a comunhão a todos ou que – a partir de agora – a Igreja deixe de propor o ideal de um casamento para a vida ou comece a falar de heterossexualidade ou de homossexualidade em pé de igualdade como se houvesse, à partida, dois tipos de sexualidade humana simétricos. Cada um deve procurar “o modo de avançar”, a partir da situação em que se encontra, com a ajuda da comunidade cristã.
O que o Papa rejeita é a ideia que algumas pessoas têm de primeiro mudar para depois poderem participar na vida da Igreja:
Parece haver uma visão que não compreende este anúncio da Igreja como mãe e concebe-a como uma espécie de «empresa», onde tu, para entrar, tens de fazer isto, proceder desta forma e não doutra… (nota 7)
É dentro da comunidade – que acolhe todos – que cada um de nós “avança”, dá passos de crescimento como cristão.
4. Uma tensão constitutiva da própria Igreja
Para ser fiel à sua missão de ser “sacramento de salvação”, a Igreja tem de viver uma tensão entre dois pólos que não são opostos mas que são muito distintos: o acolhimento universal e a proposta de determinados valores particulares. Esta tensão existe na Igreja em todos os seus níveis, desde o nível básico da vida nas paróquias até ao nível mais universal dos pronunciamentos de um Papa. “Tensão” não é o mesmo que “problema”, embora ambos deem trabalho. Um “problema” é algo que teremos de eliminar para avançar. Uma “tensão” é a relação criativa entre pólos distintos. Se uma corda de guitarra se partiu há um problema; se ela está esticada, em tensão, há um desafio: precisamos de aprender a tocá-la bem para que dê música.
Chega a uma paróquia, por exemplo, um homem com ideias políticas incompatíveis com o Evangelho. Eventualmente essa pessoa até está filiada nalgum grupo extremista e é conhecido como tal. Começa a vir à missa e agora vem sempre, todos os Domingos, e diz que está a encontrar uma paz que nunca tinha sentido antes. As pessoas à sua volta também dizem que ele está diferente. Ofereceu-se para fazer voluntariado no Centro de Dia da Paróquia e começou a ir lá todas as 5as feiras. Agora veio falar com o Pároco a dizer que gostaria de fazer leituras na Missa. Como se ajuda essa pessoa a crescer na compreensão cristã da política e a perceber que os ideais que defende não são compatíveis com Jesus Cristo? Como se vai acolhendo esta pessoa? Será bom que exerça o ministério de leitor?
É natural que, numa situação como a que atrás descrevemos, as opiniões na Paróquia, se dividam. Alguns paroquianos serão contra a integração deste homem na vida da Paróquia (“Até mesmo para bem dele, para ver se cai em si”, dirão). Outros, provavelmente, afirmarão que “isso não interessa, o que interessa é que este homem é um Filho de Deus, sejam quais foram as suas ideias políticas; o que ele faz na sua vida pessoal é lá com ele”.
Situações como esta – de distância entre os ideais objetivos do cristianismo e a realidade das pessoas – são “o pão nosso de cada dia” na vida de uma comunidade cristã. Sugeri o exemplo de um homem com ideias políticas incompatíveis com o Evangelho mas podemos pensar em muitos outros exemplos: a pessoa que vive numa união de facto, o dono de um restaurante conhecido por tratar mal os empregados, uma mulher que defende publicamente a possibilidade do aborto e afirma já o ter feito e até ter ido agradecer a Deus, a pessoa que orienta sessões de espiritismo… A questão é sempre a mesma: como se acolhe cada pessoa ajudando-a – ao mesmo tempo – a dar passos de crescimento, a perceber o que ainda não percebeu (a “avançar”, para usar a palavra do Papa no avião)?
5. Duas falsas soluções simplistas
Nem sempre é fácil para as comunidades (e para a Igreja em geral) viverem nesta tensão que obriga a muitos discernimentos, por vezes nada óbvios. A tentação é subordinar um dos pólos da tensão ao outro e assim tornar tudo muito “linear”. As falsas saídas são, portanto, duas:
- O relativismo. Para que todos se sintam bem, deixamos de propor ideais, seguindo o caminho mundano da tolerância como valor supremo. “Se isso te faz sentir bem, vai em frente”.
- O sectarismo. Para não perdermos os ideais pomos um controle à porta da Igreja. “Podes entrar, quem quer que sejas, desde que mudes para ficares de acordo com os ideais que queremos viver aqui dentro”.
Por que razão não podemos aceitar nenhuma das duas soluções? Porque ambas são infiéis a Cristo. Para ser fiel a Cristo a Igreja tem de ser um espaço de abertura e de acolhimento incondicional de todos. Como uma Mãe, que acolhe em casa todos os filhos, mesmo aquele filho que se droga ou que tem uma vida dissoluta. Mas para ser fiel a Cristo a Igreja tem também de propor o caminho que vem já dos 10 Mandamentos e do Sermão da Montanha e que depois Jesus concretizou e aprofundou na Sua pregação e na Sua maneira de viver.
A Igreja não pode aceitar nenhuma das duas falsas posições porque deixaria de ser o “corpo” de Cristo, deixaria de ser a continuação da Sua presença e da Sua ação no mundo. Ambas as soluções “decapitam” a Igreja, separando-a da Sua cabeça que é Cristo e fazendo com que deixem de ser o Seu “corpo”.
6. A dificuldade para a Igreja
Em cada época da história pendemos mais para um lado ou para outro desta tensão. Na fase em que nos encontramos no Ocidente, é óbvio que tendemos muito mais (quase absolutamente) para o relativismo. Temos até muita dificuldade em perceber qual é o interesse de falar de ideais objetivos. Apresentar um ideal poderá fazer sentir-se mal qualquer pessoa que esteja numa situação diferente desse ideal e nós queremos que todos se sintam bem. Ou seja: as nossas sociedades ocidentais têm muita dificuldade em entender que afirmar ideais não é o mesmo que condenar pessoas. (Embora introduza no processo uma tensão que o relativismo dissolve).
Se, por alguma razão, se faz alguma distinção, sugerindo que não é tudo igual a tudo, surge logo a acusação de “discriminação”. Se alguém diz, por exemplo, que uma relação homossexual não é a mesma coisa que uma relação heterossexual (ainda que essa pessoa aprove ambas) é logo acusado de discriminação. Se alguém diz que acha melhor que – pelo menos neste momento – o sacerdócio na Igreja Católica continue a ser desempenhado por homens é logo acusado de discriminação. Se um pároco, entrevistando um candidato a um lugar de secretário paroquial, perguntar se a pessoa é católica, pode ser logo acusado de discriminação. “Será que eu sou menos qualificado por não ir à missa? Não posso, de igual maneira, ser um secretário competente?”
A tensão entre acolhimento e ideais está muito presente na Igreja em muitas situações. Um bom exemplo é o dos casais em “situação irregular”, concretamente a dos “recasados” civilmente depois do fim de um matrimónio sacramental. Como cristãos, temos o ideal de uma relação para a vida (“até que a morte nos separe”) e essas pessoas – neste aspeto concreto – vivem uma situação diferente do ideal. Já lá vão os tempos em que se dizia que qualquer pessoa nestas circunstâncias estava subjetivamente em pecado mortal. Percebemos hoje com muito mais clareza a complexidade das situações com que a vida por vezes nos depara e também percebemos que só Deus pode julgar. Mas essas pessoas estão objetivamente numa situação “irregular” (ou seja: numa situação diferente da “regra”). E são muitas. Nalgumas zonas do mundo, a vasta maioria dos casais não estão numa primeira relação. Como é que a Igreja tem lidado com esta questão pastoralmente tão importante?
Seria fácil para a Igreja relativizar o ideal e dizer, por exemplo: “antigamente defendíamos isto mas os tempos mudaram…”. Por que razão não o faz? Por duas razões: antes de mais porque foi Cristo que definiu este ideal e a Igreja não pode ir contra Cristo e – para além disso – porque os ideais permanecem válidos mesmo quando não os conseguimos cumprir. Os ideais têm uma função pedagógica (para a formação, sobretudo dos mais novos), têm uma função protetora (protegem-nos de seguirmos o caminho mais fácil quando as coisas são difíceis) e têm uma função orientadora (como um farol apontam a direção certa da felicidade a partir do ponto onde nos encontramos, seja ele qual for).
Como faz a Igreja – concretamente neste caso – para acolher estas pessoas e – ao mesmo tempo – não relativizar o ideal? Não é fácil… Por um lado, pede aos casais nestas situações para não irem à comunhão, ajudando assim (embora pela via negativa de não irem à comunhão) a manter o ideal vivo na comunidade; por outro lado reafirma que devem ser acolhidos e inseridos na Igreja. (nota 8)
O Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica “A Alegria do Amor”, reafirma claramente que não podemos retirar nada ao ideal:
“Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza”. (nota 9)
No famoso capítulo VIII, que leva o título “Acompanhar, Discernir e Integrar a Fragilidade”, não retirando absolutamente nada ao ideal, o Papa deixa claro que é preciso:
integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objeto duma misericórdia «imerecida, incondicional e gratuita». Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! (nota 10)
E, mais a frente:
é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente – possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja. (nota 11)
E, em nota de rodapé, acrescenta que:
Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. (nota 12)
Ou seja: uma determinada pessoa em situação irregular poderá – eventualmente – ser readmitida à comunhão pela autoridade eclesiástica depois de um processo sério de acompanhamento e de reconciliação.
7. Por que é que o Papa falou mais do polo do acolhimento?
Nas suas intervenções na JMJ de Lisboa, o Papa falou sobretudo na necessidade do acolhimento e não sublinhou tanto que temos ideais e que, na Igreja, não vale tudo o mesmo. Porquê?
Um Papa, cada vez que fala, não tem de destacar todos os elementos. Na JMJ de Lisboa o Papa Francisco quis destacar que a Igreja está de portas abertas para todos. Tinha certamente noção que uma JMJ é uma oportunidade privilegiada de a sua voz chegar a pessoas que habitualmente não vão à missa nem leem os documentos do Magistério e que podem pensar que não há lugar para elas na Igreja.
Alguns podem lastimar que o Papa não tenha recordado que depois é preciso ver como se acolhe cada um, que o “Todos” não significa que todos possam comungar ou que todos possam fazer leituras na Missa, ou o que for. Mas aí entraria numa casuística descabida. Essa casuística (a ponderação da melhor maneira de lidar com cada caso concreto) pertence às comunidades (às dioceses, às paróquias, aos movimentos, aos diversos grupos eclesiais) que procurarão as melhores formas de acolher e ajudar a crescer cada pessoa na sua situação única. É uma reflexão que não pode nem deve ser feita por um Papa no seu magistério universal.
8. Implicações pastorais
A alegria de acolher quem bate à porta, venha como vier
No outro dia uns jovens, jogando à bola ao lado da nossa igreja, deram um pontapé mais forte e a bola foi parar acima do telhado da igreja. Vieram bater à porta. Não eram jovens da catequese nem do grupo de acólitos mas do pequeno jardim ao lado da igreja onde parece que se vendem e consomem produtos não totalmente legais. Alguns paroquianos mais velhos têm medo de passar pelo jardim, embora nunca tenhamos tido nenhuma razão de queixa para além do facto do volume da sua música por vezes poder ser alto de mais. Agora vieram bater à porta. A primeira reação de alguns de nós foi de uma certa indignação. Já estamos quase na hora da missa e ainda temos de ir à procura da escada mais alta para tentar chegar à bola! Não poderiam ter ido jogar à bola para outro lado? Outros ficámos contentes com a oportunidade de um contacto mais próximo com eles. “Olá, como se chamam? Têm medo das alturas? Vamos lá a ver onde se escondeu essa maldita bola! Vamos lá a isso”.
Por detrás dessas duas reações, estão duas formas distintas de entender a Igreja. A Igreja de que fala o Papa Francisco é a Igreja que fica contente com alguém bater à porta, seja por que razão for. É a Igreja que fica contente por ver entrar na missa um sem-abrigo, mesmo que não se tenha lavado com o melhor perfume ou uma mulher da sociedade conhecida pela futilidade das suas atividades e dos seus comentários. A outra forma de entender a Igreja preza sobretudo a sua correção (o seu bom funcionamento, a sua ortodoxia, a perfeição da sua liturgia, a sua arrumação). Estas duas formas não são opostas nem mutuamente exclusivas mas acentuam valores diferentes.
Muitas vezes batem à nossa porta pessoas que querem, por exemplo, ser padrinhos de Batismo de algum bebé mas que não reúnem as condições ideais para o poder ser (não são crismados ou vivem em situação marital irregular ou não vão habitualmente à missa aos Domingos, por exemplo). A principal questão, a meu ver, nem é a decisão prática de os aceitarmos ou não para padrinhos (em cada situação procurar-se-á entender o que é melhor fazer). A principal questão é prévia: ficamos contentes que tenham batido à porta? Que processo bom de crescimento para eles pode começar com este nosso primeiro encontro? Que levam de bom deste contacto connosco?
Esta atitude de fundo de querer receber a todos parece-me ser a da Igreja de Cristo. Com boa vontade e alguma criatividade procurar-se-á o melhor em cada caso. Talvez nem possam mesmo ser padrinhos de Batismo mas encontraremos, eventualmente, uma maneira de os envolver na celebração. Ou talvez se entusiasmem a dar alguns passos concretos de crescimento na fé depois do Batismo e assim os possamos aceitar para padrinhos, mesmo sabendo que talvez depois não cumpram o combinado. Mas ficarão com a boa recordação da forma como foram acolhidos e, quem sabe, um dia – noutra fase da vida – voltem para iniciar este caminho.
Parece-nos, portanto, que uma primeira implicação pastoral do ensinamento evangélico sublinhado pelo Papa é a alegria de podermos acolher quem bate à porta, venha em condições vier. Temos, por isso, de nos perguntar com honestidade: “sentimo-nos incomodados por alguém de fora vir perturbar as nossas rotinas ou sentimo-nos contentes por podermos acolher em nome de Jesus? Consideramo-nos porteiros de um clube exclusivo, particularmente competentes na seleção de quem está “em condições” e de quem não está, ou representantes Daquele que acolheu ladrões e prostitutas de braços abertos sem nem sequer lhes pedir nada?”
A disponibilidade para o acompanhamento pessoal
Uma segunda consequência – para podermos ser a Igreja não relativista mas onde “todos” são bem vindos – é que as comunidades têm de saber acompanhar as pessoas concretas nos seus processos de crescimento. Hoje em dia, no ocidente, cada caso é um caso único. Temos de ter critérios mas não é possível ter tudo previsto em regras de secretaria ou de cartório. Também nisto a Igreja tem de ser Mãe, sabendo acolher e acompanhar cada pessoa na especificidade das sua situação particular. Qualquer mãe ou pai sabe que aquilo que funciona bem na educação de um filho não é o mesmo que funciona bem na educação de outro. Se calhar um precisa mais de regras firmes e o outro precisa mais de colo, por exemplo.
Este acompanhamento pessoal requer disponibilidade de tempo. É incompatível com párocos apressados que chegam a correr para celebrar uma missa e têm de partir logo a correr para celebrar outra noutra igreja. Talvez o acompanhamento pessoal não tenha sempre de ser feito por padres (há leigos que por vezes o farão muito bem) mas o pastor da comunidade terá sempre que sair do seu carro e do seu escritório para chegar perto de cada paroquiano e o conhecer pessoalmente. E certamente não o poderá fazer se tiver oito paróquias a seu cargo, por muito boa-vontade que tenha.
A oferta pastoral com “portas”
Para além deste acolhimento pessoal, uma comunidade, na sua oferta pastoral, tem de oferecer propostas concretas para quem vem de fora. Uma comunidade não pode ter só ofertas para os “de dentro” e para as crianças: Sacramentos, Terços, Funerais, Catequese… Para além delas, é também necessário que existam grupos ou atividades mais adaptadas àqueles que estão “à descoberta” para que possam dar passos de crescimento, pôr questões, confrontar visões, aprender o básico. Podem ser, por exemplo: caminhadas a pé com momentos de oração, grupos de debate dos temas que as pessoas trazem onde se explica a visão cristã, grupos de iniciação à oração, módulos de formação catequética básica, etc. Uma oferta pastoral baseada em Sacramentos e atividades para crianças dificilmente será a de uma Igreja de portas abertas para todos.
A experiência mostra que muitas destas ofertas pastorais pensadas especialmente para quem está “fora” são procuradas com muito proveito por quem está “dentro”. Parece-nos que isto se deve a 2 motivos. Primeiro porque qualquer crente é um buscador, à procura de mais e, depois, porque muitas das pessoas que frequentam as nossas comunidades nunca tiveram qualquer tipo de formação depois da catequese e, por isso, têm muitas necessidades em comum com quem se aproxima da fé pela primeira vez.
A formação de ministros acolhedores
Uma Igreja para todos pressupõe a formação de ministros que saibam acolher, sejam ordenados ou leigos. A principal característica de quem sabe acolher é a humanidade: a capacidade de encontro sincero olhos nos olhos, sem defesas nem estratégias de marketing. Todos sabemos o que é sermos bem acolhidos num sítio, tal como sabemos o que é sermos mal acolhidos e sentirmo-nos a mais. Não é preciso muitos cursos de teologia para entendermos isto. Acolher bem não é estar sempre a sorrir e dar muitas palmadinhas nas costas do outro mas sermos nós mesmos e termos o coração aberto ao outro, seja ele quem for. Cada um terá o seu modo de o fazer, não temos de ser todos iguais. Não temos de ser todos nem muito faladores nem muito divertidos mas temos todos de estar de coração aberto.
Temos tantas regras, tantos papéis e tantos rituais na Igreja que a relação humana pode passar para segundo lugar. Sabemos que tudo o que temos na Igreja é por causa de pessoas e para a sua Salvação mas – na prática – é difícil não começarmos a sentir a comunidade como uma empresa e a viver para a sua manutenção. E, neste afã de uma boa manutenção, por vezes as pessoas só atrapalham. Temos de ouvir muitas vezes a palavra de Jesus a recordar-nos que nos chamou, tal como a S. Pedro, para sermos “pescadores de homens” e não organizadores de dossiers ou de eventos.
Provavelmente a Igreja de que fala o Papa Francisco precisa de repensar a formação que é oferecida em muitos seminários e ordens religiosas. Não me refiro só à formação teológica, litúrgica e canónica mas – sobretudo – à formação humana. Um padre precisa de perceber as pessoas, de saber ser seu confidente e depois de as saber ajudar a “avançar” – usando a palavra do Papa Francisco – com discernimento.
Para isto duas coisas são essenciais. A primeira é que cada futuro padre se conheça a si mesmo e ao seu mundo afetivo, convivendo com liberdade com a sua própria história e feridas pessoais. Se não o fizer, dificilmente terá relações saudáveis com os outros: será carente, dependente, partidarista ou, pelo contrário, arrogante, inatingível, mecânico. Mas ninguém abraça o seu mundo emocional se o guarda sempre no silêncio e não é capaz de falar dele com alguma naturalidade com um seu orientador espiritual, por exemplo. A outra coisa essencial num padre é ser um “homem de Deus” (o que é muito mais do que ser um funcionário da religião). Um homem de Deus é um buscador do Mistério, que busca a Deus – na oração e ao longo do dia – porque precisa pessoalmente Dele. Esta busca, e as mil encruzilhadas com que já se deparou ao longo do caminho, permitir-lhe-á entender melhor as encruzilhadas dos outros, as tentações subtis que os atacam, os seus pecados e também as portas de saída que por vezes não são nada óbvias.
Tudo o que disse acerca da formação do clero podemos dizer também acerca da formação dos diáconos permanentes e ministros leigos, desde os catequistas da infância aos voluntários do Centro de Dia passando pelas pessoas que asseguram o cartório ou orientam a formação cristã de adultos. A par, evidentemente, das outras formações mais doutrinais ou “técnicas”, todos devem ser formados para acolher de uma maneira simples e calorosa quem quer que apareça. A primeira aula desta formação humana é simples: aprender a sorrir e a olhar o outro nos olhos em vez de falar com ele enquanto olha para o monitor do computador ou para os impressos que tem sobre a secretária.
9. Conclusão
A insistência do Papa Francisco no acolhimento de “Todos, todos, todos” não significa um relativismo em relação aos ideais. Eles permanecem intactos.
O Papa diz que a Igreja tem de saber acolher todos mas não diz – nem pode dizer – como é que isso será feito em cada caso. As comunidades locais terão de encontrar os modos de ajudar cada pessoa a “avançar”. As decisões por vezes não são nada fáceis nem óbvias. Quem quer evitar a necessidade de discernimento (para ter tudo muito “claro”) terá de escolher uma de entre duas falsas soluções: o relativismo ou o sectarismo. Ambas pervertem a Igreja separando o “corpo de Cristo” da sua “cabeça”.
Para que uma comunidade possa acolher bem, como Cristo, tem de cuidar da sua oferta pastoral e da formação dos seus ministros.
Esta clarificação, de que a Igreja é para todos, devia encher de alegria cada um de nós. Que bom que a Igreja seja para todos! Que bom que a Igreja não seja só para os que já vivem de acordo com o ideal. Se fosse assim, quem teria lugar nela? O que seria de cada um de nós? (nota 13)
Notas:
- Artigo publicado em La Civiltà Cattolica, n. 4161, 4/18 Novembro 2023.
- Papa Francisco, Homilia nas VÉSPERAS COM OS BISPOS, OS SACERDOTES, OS DIÁCONOS,
OS CONSAGRADOS, AS CONSAGRADAS, OS SEMINARISTAS E OS AGENTES DA PASTORAL, Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, 2 de Agosto de 2023. - Papa Francisco, Discurso na CERIMÓNIA DE ACOLHIMENTO, Parque Eduardo VII, Lisboa, 3 de agosto de 2023.
- Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 47, Roma, 24 de Novembro de 2013.
- Lc 19,9.
- Papa Francisco, Conferência de Imprensa durante o voo de regresso de Lisboa, depois das JMJ, 6 de Agosto 2023.
- Ibid.
- Este ensinamento foi reafirmado muito claramente pelos últimos Papas. Por exemplo: à Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para a Família, S. João Paulo II dizia que: “Quando o casal em situação irregular volta à prática cristã, é necessário acolhê-lo com caridade e benevolência, ajudando-o a esclarecer o estado concreto da sua condição, através dum trabalho pastoral iluminado e iluminante. Esta pastoral de acolhimento fraterno e evangélico, para aqueles que tinham perdido o contacto com a Igreja, é de grande importância: é o primeiro passo imprescindível para os inserir na prática cristã.” João Paulo II, DISCURSO À XIII ASSEMBLEIA PLENÁRIA DO PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA, 24 Janeiro 1997.
- apa Francisco, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia, n. 307, Roma, 24 de Novembro de 2013. Acrescenta claramente que: “O matrimónio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes confere a graça para se constituírem como igreja doméstica e serem fermento de vida nova para a sociedade” (Idib., n. 292).
- Ibid., n. 297.
- Ibid., n. 305.
- Ibid., Nota 351.
- Já depois de publicado este artigo na revista La Civiltà Cattolica, surgiu a Declaração Fiducia supplicans (18 Dezembro 2023). No documento (assinado pelo Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé e aprovado pelo Papa Francisco), fala-se da “possibilidade de serem dadas bênçãos a casais em situações irregulares e a casais do mesmo sexo”. Na apresentação da Declaração, o Cardeal Fernandez clarifica que isto não significa “convalidar oficialmente o seu status (de tais casais) nem alterar de modo algum o ensino perene da Igreja acerca do Matrimónio”, que o texto recorda ser uma “união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à procriação” (Fiducia Supplicans, 4). No modo de dar tais bênçãos deve, por isso, “ser evitado qualquer tipo de rito que possa contradizer esta convicção ou levar a qualquer confusão”. Insiste-se que “a doutrina da Igreja sobre este ponto mantem-se firme” (Ibid.). No entanto, o documento relembra a “caridade pastoral” que a Igreja deve ter para com todos (Ibid., n. 26), já que “nós, para Deus, somos mais importantes que todos os pecados que possamos fazer porque Ele é pai, é mãe, é amor puro. Ele abençoou-nos para sempre. E nunca deixará de nos abençoar” (Ibid., n. 27). Fica claro neste documento que acolhimento das pessoas não significa relativização dos ideais.
Fotografias: Miguel Cardoso
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.