Patrick Leigh Fermor é conhecido por ter raptado um general alemão, na Creta ocupada, em 1942, no auge da sua carreira militar; mas mais do que isso, Leigh Fermor teve uma vida absolutamente extraordinária, e soube partilhá-la como um prosador «sem precedentes», como diz Jan Morris na introdução (p. 9). Também por este motivo será difícil classificar a sua prosa, entre as memórias e a literatura de viagens.
Este livro é o segundo de Leigh Fermor editado pela Tinta da China e o primeiro de uma série de três que relata, na primeira pessoa, a viagem a pé do herói e autor, de Roterdão até Constantinopla, em 1933, atravessando então a Alemanha nos primórdios do Nazismo. Este testemunho histórico singular caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo seu otimismo e humildade, sobretudo intelectual. Uma virtude inesperada, para um jovem que leva consigo o Oxford Book of English Verse e as Odes de Horácio e que, além disso, domina uma «antologia privada» de poesia, que recita de cor pelo caminho (pp. 119–126).
Ler Tempo de Dádivas é especialmente importante numa época em que a memória é desvalorizada, e viajar se tornou amiúde uma atividade transacional, meticulosamente planeada e, também por isso, muito precária.
Leigh Fermor, «uma perigosa combinação de sofisticação e imprudência», como lhe dissera o seu diretor (p. 27), dorme em palácios e em palheiros e não compreende o pessimismo intelectual vienense, admitindo que talvez isso seja uma falha sua; reconhece mesmo a sua inaptidão para discutir política, não abdicando, ainda assim, do seu pacifismo idealista. Já o seu otimismo não se deverá tanto a um conjunto de princípios, mas a uma atitude de confiança e abertura, manifesta na forma como o Leigh Fermor jovem se relaciona com as pessoas e confia toda a sua viagem na providência. É essa combinação que lhe permite ser ardiloso e aproveitar oportunidades fulcrais para avançar para Leste ou mesmo para retroceder, quando lhe dizem que tem de ver Praga. Estas atitudes associam-se, sem dúvida, ao valor teológico da dádiva, que permeia o testemunho: Leigh Fermor vai aprendendo a acolher o inesperado, a saber dar sem receber e receber sem dar, o que é tão bem expresso no episódio do Natal em Bingen. (p. 92).
Ler Tempo de Dádivas é especialmente importante numa época em que a memória é desvalorizada, e viajar se tornou amiúde uma atividade transacional, meticulosamente planeada e, também por isso, muito precária. Tempo de Dádivas é uma verdadeira peregrinação e merece, também por isso, o nosso passo vagaroso.
Tempo de dádivas
LEIGH FERMOR, Patrick
Tinta da China, 2020 (23.90€): Comprar aqui.
Fotografia: Damien DUFOUR – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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