Só se perde o que não se cuida

No pós quarentena, há uma abertura de coração que vamos ter de praticar. E o nosso Papa anda a falar disto há anos: passar do consumo desenfreado ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à partilha.

No pós quarentena, há uma abertura de coração que vamos ter de praticar. E o nosso Papa anda a falar disto há anos: passar do consumo desenfreado ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à partilha.

Reza a história da família que quando eu era miúda de cinco anos e respondia torto aos meus pais, estes se encarregavam de me mandar para o confinamento do meu quarto “para eu pensar no assunto”. Com essas horas de castigo e outras mais amenas, a Leonor de então aprendeu a estar só com os seus botões e as mil e uma coisas que a entretinham. Mais tarde, isto tornou-se necessidade e uma forma de me reequilibrar.

Assim, quando há mais de 40 dias recebi no escritório onde sou advogada, a notícia de que teria de me fechar em casa, agarrei nos códigos e assim fiz. Devo confessar que de início, nem me custou, provavelmente, estava a precisar da pausa. Foi o passar do tempo que me fez descobrir o resto.

É que, se sinto necessidade de por vezes estar só, também sei que sou abençoada com amigos que acarinho e uma família que me estrutura e o retirar súbito desse alicerce, foi o primeiro soco desta realidade, perceber que há uma diferença entre a distância ocasional e a ausência imposta, entre o espaçar do tempo que se compensa com um abraço e a impossibilidade de tocar os que mais amo.

Com o tempo, a dor disto tudo foi acamando e porque somos sobreviventes, dei por mim a criar rotinas, consciente de que só se perde o que não se cuida e que há fontes inesgotáveis de nos fazermos bem.

Depois, veio a angústia de saber que o vírus já tinha chegado a uns quantos que conhecia e que havia amigos a perder família sem o consolo de um funeral digno de despedida.

Com o tempo, a dor disto tudo foi acamando e porque somos sobreviventes, dei por mim a criar rotinas, consciente de que só se perde o que não se cuida e que há fontes inesgotáveis de nos fazermos bem.

Lembro uma entrevista do P. Vasco Pinto Magalhães, sj em que ele dizia que a maior fonte da alegria é a experiência de nos sabermos amados e eu tenho percebido o quanto isso é verdade – essa atenção consola quando a ausência se impõe e fortalece-nos nela.

É sabido que já se fala do retorno gradual a uma quase normalidade, mas sabemos que nunca será um regresso ao antes. O trabalho que, a nós advogados, nos tem chegado às secretárias já é reflexo disso: nestes dias vendemos negócios que não se aguentaram à porta fechada, tratámos de processos de lay off, passámos os olhos por insolvências, escrevemos cartas de arrendatários a requerer o diferimento do pagamento de rendas e explicámos a senhorios (que dependem dessas rendas para viver), como elas serão pagas depois.

Teremos de ser proactivos, abdicarmos do nosso tempo e conforto, prescindirmos do supérfluo para que outros tenham comida no prato.

É para isto que temos de nos preparar e vai exigir de nós muito mais do que estamos habituados. Teremos de ser proactivos, abdicarmos do nosso tempo e conforto, prescindirmos do supérfluo para que outros tenham comida no prato. Há uma abertura de coração que vamos ter de praticar e o nosso Papa anda a falar disto há anos: passar do consumo desenfreado ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à partilha. É isto ou continuaremos a tropeçar nos Lázaros da vida e fingir que não os vemos!

Tenho uma amiga que gere o projeto de uma livraria em Cascais e que quando soube que um liceu estava a albergar pessoas sem abrigo, encheu sacos de livros e foi lá entrega-los. O bom desta história é saber que um gesto simples transforma vidas anónimas, aqueles livros foram lidos e acarinhados (diz que havia uma Agatha Christie escondida debaixo de uma cama como algo precioso). Esta será a matriz.

Claro que caberá às instâncias governativas criar medidas para que muito seja possível, mas os cofres do Estado e da UE não vão chegar e não bastará também uma noção vaga de solidariedade social.

Das leituras desta Páscoa, houve uma frase que me prendeu a atenção e que colei num post it à frente da secretária, ela fala de uma multidão que “tinha um só coração e uma só alma”. Tenho pensado neste ser comunitário que se cuida a si mesmo, porque se não aprendermos com a história passada, restará o sofrimento presente.

Não podemos acomodar-nos à resignação de “o Estado que resolva” ou a “Igreja que se mexa”, porque Estado e Igreja somos nós e isso é coisa que se aprende no primeiro ano da faculdade e nos bancos da catequese.

 

Fotografia de capa: Leonor Rosado

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.