Neste tempo de Advento, que para os cristãos é um tempo de preparação do nascimento de Jesus, o Salvador – o Ponto SJ convidou quatro personalidades não crentes a refletirem sobre a esperança. Nos quatro domingos do Advento publicaremos quatro reflexões sobre a esperança, que é também o tema proposto pelo Papa Francisco para o Jubileu que se assinalará em 2025.
Hoje publicamos o segundo artigo, assinado por Ângelo Fernandes, fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”. Nesta reflexão, traz-nos o testemunho de que é possível recuperar a esperança e a alegria de vida, mesmo depois de se ter passado por um sofrimento tão traumático e doloroso, e a importância de não se estar sozinho neste processo.
Existe muita desinformação em relação à violência sexual e à dimensão traumática deste tipo de crime. Nas ações de formação e de sensibilização realizadas pela Quebrar o Silêncio, encontramos muitas pessoas, profissionais e leigos, que acreditam que as marcas do trauma ficarão para sempre. Por este motivo, acreditam que a vítima não será capaz de ser feliz, de ter uma vida “normal”, como se estivesse fadada ao sofrimento sempiterno. Não é o caso, antes pelo contrário: é possível ser feliz, mesmo depois de ter sido vítima de violência sexual.
A desinformação alimenta e é alimentada por várias crenças erradas e mitos sobre o abuso sexual. Encontramos vários homens sobreviventes com uma idade mais avançada, com 50, 60 e 70 anos de idade, que se questionam se valerá a pena procurar apoio e remexer no passado. A resposta é sim. Estes homens enganam-se quando pensam estarem sozinhos com estas dúvidas. Os sobreviventes com 20 ou 30 anos pensam o mesmo. Procurar ajuda é um risco para os sobreviventes do sexo masculino. Estes homens não sabem se a outra pessoa acreditará nas histórias de abuso deles, se lhes apontará o dedo, se os acusará erradamente de terem tido alguma forma de responsabilidade, entre várias outras questões.
Sabemos que um homem, que foi abusado sexualmente na infância, demora, em média, mais de 20 anos a procurar apoio e partilhar o que aconteceu. É natural que, após décadas em silêncio, o sobrevivente sinta hesitação em procurar apoio e iniciar o processo de recuperação do trauma. É comum questionar-se se deverá “remexer” em questões que parecem estar escondidas ou adormecidas e que, por vezes, parecem inofensivas. No entanto, quando terminam o apoio e olham para trás, compreendem que pedir ajuda foi o passo que os ajudou a libertarem-se do trauma.
«Antes de recorrer ao apoio da Quebrar o Silêncio carregava um peso»
Muitos homens quando chegam à Quebrar o Silêncio dizem: «não me sinto merecedor de amor ou de coisas boas». Infelizmente, este é um sentimento comum e partilhado por muitos dos sobreviventes. Uma das consequências do abuso sexual é a destruição da autoestima, deixando as vítimas com sentimentos intensos de autodesvalorização e levando-as a interiorizar que não merecem nada de bom. Esta crença pode manifestar-se na negligência e desinvestimento pessoal. Podem evitar ir ao médico quando necessitam, não marcar exames ou tratamentos de saúde, descuidar a alimentação e/ou adotar comportamentos de risco.
Depois do processo de apoio da Quebrar o Silêncio, observamos uma mudança de postura em relação à vida e a si mesmos. Vemos homens capazes de valorizar as relações que têm e de nutri-las ainda mais, algo que anteriormente lhes parecia estar vedado. Apostam no autocuidado e têm uma outra forma de ver a vida. Sentem-se seguros e com esperança face ao futuro. Muitos referem que retomaram, finalmente, o controlo das suas vidas.
Para terminar este texto, trago uma versão reduzida do testemunho de um sobrevivente que procurou ajuda aos 69 anos.
«Antes de pedir ajuda à Quebrar o Silêncio, eu sentia-me com medo, sempre. Sentido de inferioridade, não merecia amor porque era sujo, mentiroso e esquecido. Não conseguia imaginar que a terapia tivesse sucesso quando começou. No início trabalhámos muito na área da auto-estima, livrando-me da noção que eu era um homem sujo e mau, trocando isto por sentimentos positivos com a ajuda de exercícios. Hoje sinto que estou a viver no meu corpo, estou a seguir o meu instinto e a minha intuição porque confio neles, confio em mim, estou seguro. Já não tenho pesadelos. Gosto do meu dia a dia. Aos outros homens que ainda não pediram ajuda, digo-lhes que podem encontrar ajuda para enfrentar o trauma anos depois do acontecimento, mesmo que não se lembrem o que aconteceu. Eu tinha três anos na altura do abuso e agora tenho sessenta e nove.»
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.