Se o Teatro morreu, Viva o Teatro

Mediante a escuta destas vozes é possível reencontrar a essencialidade das fontes teatrais, consubstanciadas nas práticas cénicas. O teatro, como arte viva, é um lugar que permite o encontro entre as pessoas.

Mediante a escuta destas vozes é possível reencontrar a essencialidade das fontes teatrais, consubstanciadas nas práticas cénicas. O teatro, como arte viva, é um lugar que permite o encontro entre as pessoas.

Na civilização tecnológica desumanizante de hoje, o teatro é uma das ilhas importantes da autenticidade humana.
Václav Havel

Com esta afirmação “Se o Teatro morreu, Viva o Teatro”, Jean Cocteau finaliza a sua mensagem, que inaugurou a 27 de Março de 1962 a celebração do Dia Mundial do Teatro. No seu texto, assinalou a importância do diálogo e da partilha, manifestada na possibilidade de cruzar o singular e o plural, o objectivo e o subjectivo, o consciente e o inconsciente, pois segundo Cocteau, o teatro é um dos melhores exemplos de osmose, permitindo que se coloquem frente a frente posições antagónicas.

Ao longo dos anos, as mensagens para este dia, promovido pelo Instituto Internacional de Teatro. têm vindo a ser escritas por diversas personalidades de diferentes áreas artísticas, nacionalidades, culturas e regiões do globo, sendo, contudo, possível encontrar, naturalmente, algumas linhas de força identitárias desta forma de arte que permanentemente se reinventa.

Quanto ao que é específico da forma dramática, muitos dos autores sublinharam nas suas mensagens a importância da existência de uma forma artística que privilegia o diálogo e a dimensão humana: ajudando a discernir os antagonismos e diferenças que separam os homens e pondo em evidência tudo aquilo que comungam entre si (Barrault, 1964); assumindo-se o teatro como um meio humano por excelência, onde se podem confrontar as relações e os valores (Visconti, 1973); enquanto o cinema é “maior que a vida”, assim como a televisão e os computadores são frequentemente “menores que a vida”, o teatro tem “exactamente o mesmo tamanho da vida, nem maior nem menor” possibilitando deste modo uma relação de maior intimidade e humanidade (Finnbogadóttir, 1999).

O teatro tem “exactamente o mesmo tamanho da vida, nem maior nem menor” possibilitando deste modo uma relação de maior intimidade e humanidade (Finnbogadóttir, 1999).

A natureza singular do actor/actriz e a sua relação directa com o público, também tem sido valorizada por uma série de autores nas suas mensagens: exortando a serem artistas, que para além da palavra, podem juntar o canto com a dança, esculpindo o seu corpo, pintando as suas emoções (Béjart, 1972); destacando que os aspectos particulares da representação ao vivo sublinham o carácter incerto e o risco permanente do aqui e agora, numa situação em que um ser humano representa alguém, um outro que não ele próprio, perante um outro ser humano que o está a ver (Karnad, 2002); assinalando que é a única arte que oferece, sem intermediários, “uma palavra de boca a boca, um olhar de olhos nos olhos, um gesto de mão em mão e de corpo a corpo” (Vassiliev, 2016).

A diversidade de formas e de tradições culturais no teatro vem sendo salientada por alguns autores nas suas mensagens, evidenciando: as investigações em torno do teatro indígena e das suas tradições, assim como o de minorias étnicas, em prol da liberdade de expressão (Malmborg, 1982); a tradição popular do teatro africano, que combina a dança com a música e a acção (Soyinka, 1986); a tradução e representação de peças de outras culturas possibilitando um mútuo conhecimento e uma fertilização artística cruzada, perante a “avalanche de trivialidade homogeneizada” de produtos comerciais feitos para a televisão (Esslin, 1989).

A relação entre o teatro e a sociedade está também patente em muitas das mensagens: o teatro, que parecia ter sido relegado para um segundo plano, retornou para o centro da experiência colectiva, tornando-se uma catacumba, onde “o homem desce ao encontro consigo mesmo e do seu próprio destino colocando as suas crenças e as suas emoções à prova, num jogo que tem o duplo poder da realidade e da imaginação” (Visconti, 1973); respondendo aos que afirmam que na pós-modernidade não é possível contar histórias, que se está para além da utilização dos instrumentos tradicionais do teatro, num mundo onde não há diálogos, não há drama, mas apenas outro tipo de textos, sobretudo declarações, Tankred Dorst reafirma a sua confiança em que o teatro saberá sempre “encher-se de vida” enquanto os seres humanos necessitarem de partilhar uns com os outros o que são, o que não são, e o que gostariam de ser (Dorst, 2003); segundo Augusto Boal “o teatro não é apenas um evento; é um modo de vida” pois somos todos actores, e de mudança, porque “ser um cidadão não é apenas viver em sociedade, mas transformá-la” (Boal, 2009).

É um convite a abrandar o tempo, uma oportunidade de conhecer, partilhar e imaginar outras realidades, de viver outras vidas, constituindo-se como um tesouro de memórias quentes e salvaguardando uma poética da natureza humana.

Nalgumas mensagens também é salientada a importância do teatro na educação e na preservação da memória: os artistas de teatro, irmanados na poesia, “frequentemente antecipam a realidade do amanhã e têm um pressentimento do destino da humanidade, representando também a sua memória!” (Perinetti, 1985); de todas as artes, o teatro talvez seja a única que não pode, nem deve, distanciar-se das questões, receios e desafios do seu tempo enriquecendo “a herança universal do conhecimento” (Mayor, 1991); os adversários do teatro são a ausência de educação artística das crianças, a pobreza que afasta as audiências, e a negligência das instituições governamentais que deveriam promovê-lo, pois o teatro “é uma demonstração de fé nos seres humanos que são responsáveis pelo seu destino” (Rascón-Banda, 2006).

Mediante a escuta destas vozes é possível reencontrar a essencialidade das fontes teatrais, consubstanciadas nas práticas cénicas. O teatro, como arte viva, é um lugar que permite o encontro entre as pessoas. É um convite a abrandar o tempo, uma oportunidade de conhecer, partilhar e imaginar outras realidades, de viver outras vidas, constituindo-se como um tesouro de memórias quentes e salvaguardando uma poética da natureza humana. E, por isso, enquanto houver seres humanos, o teatro prevalecerá.

Fotografia de  mostafa meraji – unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.