A Fundação Calouste Gulbenkian presenteou-nos com mais uma das suas esplêndidas iniciativas e desta feita convidou-nos a fazer uma viagem ao norte de Portugal. Eu fui, e quando lá estava via romarias, procissões ou ranchos a dançar. Tinha os foguetes nos ouvidos a rebentar, as bandas a tocar, a concertina a chamar, o pessoal a resistir mas depois a ceder e ir dançar. Regressei satisfeito, bem-disposto com o que revisitei mas também com o que descobri.
A ideia dos organizadores foi cruzar esse Minho alegre e de cores garridas com a pintura de Sarah Afonso, aqui, toda ela, em sintonia perfeita com a região.Arrecadas em filigrana de Póvoa de Lanhoso? Barros da feira de Barcelos? Fatos das lavradeiras de Viana do Castelo? Está lá tudo para ser visto, mas muito mais. Sobretudo, mais a pintura de Sarah. Comecemos então com um apontamento sobre a sua vida.
Pode dizer-se que em Sarah Afonso havia uma forte costela minhota, embora tivesse nascido em Lisboa, em 1899. É que o pai era de Valença do Minho e, sendo oficial do Exército, foi com a família, a certa altura da sua carreira de militar para Viana do Castelo. Sarah chegou em 1903 e aí ficou até 1914. Passou pois uma infância inteira a beber a paisagem, os costumes e a cultura locais que a marcaram para toda a vida. Anos depois tinha que voltar lá e daí a pintura desta exposição, que são afinal as memórias do Minho de Sarah Afonso.
A família regressou a Lisboa entre 1915 e 1922 onde Sarah cursou pintura, na Escola de Belas Artes. Terá sido a última discípula de Columbano. Expôs, foi notada e incentivada a ir para Paris, o que faz em 1924. Durante oito meses aí ficou a aperfeiçoar a sua formação. Conheceu então vários portugueses que lá estavam, como Diogo de Macedo, Francisco Franco, Dordio Gomes ou Abel Manta. Regressou a Paris em 1928, mas teve que voltar a Lisboa no ano seguinte devido a doença da mãe. A partir daí, sempre em Lisboa, participou activamente na vida artística da capital. Pintou, participou em várias exposições, e…
E em 1934 casou com José de Almada Negreiros, seis anos mais velho, figura polifacetada, polémica e provocadora, tocada pela genialidade. Era já então famoso, sobretudo pelo desenho e pela pintura, mas também na literatura.
Na pintura de Sarah há um claro encantamento pela arte popular, mas o que ela fez não é arte popular, nem verdadeiramente imitação de arte popular.
É que Sarah tinha descoberto a vida na província, conheceu mais mundo na capital, viveu os loucos anos vinte em Paris e tornou-se uma mulher livre. Por isso é que teve a coragem, à época, de frequentar sozinha a “Brasileira do Chiado”. A intelectualidade lisboeta comentou. Almada apaixonou-se pela única mulher que entrava sozinha no café e ela também por ele. Casaram depois de poucos meses de namoro. A lua-de-mel foi em Vila Praia de Âncora, obviamente, e as férias dos quatro anos seguintes em Moledo do Minho, evidentemente.
Abriu-se um ciclo familiar novo na vida de Sarah (tiveram dois filhos) e é nesses anos trinta que vemos concentrar-se a sua produção pictórica inspirada na arte popular minhota. Até que, a partir de 1939, a pintura deixa de ser a sua produção artística regular. Desistiu, porque achou que não podia haver dois pintores na mesma família, sobretudo sendo o seu marido quem era. Sobretudo depois de nascer a filha, a precisar de importantes cuidados de saúde. Mas Sarah passou a fazer cerâmica, têxteis e ilustração, decoração e até jardinagem. Actividades que a ocuparam sempre, também para acorrer a um ou outro período economicamente difícil da família.
Adivinha-se que foi uma mulher de armas, que abdicou do muito que gostava, afinal, uma “rapariga minhota”… Curiosamente, também foi um minhoto (pelo pai), o António Pedro, de Moledo do Minho, que lhe disse quando ela casou: “Acho que o Almada faz um bom casamento, você não”. Mas como se viu, ela seguiu em frente. Naturalmente que não foi fácil a Sarah deixar de ser apenas “a mulher do Almada”. Mas o certo é que, quando em 1983 a nossa artista morreu (Almada falecera em 1970 e a filha em 1978), ela tinha obtido, discretamente, o reconhecimento generalizado do país e conquistara um lugar ímpar no modernismo português. Se calhar o culpado foi o Minho, porque como ela disse, quando estava a passar uma temporada na terra do pai, “aí tudo são quadros à espera de pintores”.
No extremo norte de Portugal, o Minho é um extenso declive que desce, a partir das serranias da Peneda Soajo e Gerês, do Alvão e até do Marão, para o oceano. Por isso, também quatro rios principais, de modo quase paralelo desaguam no mar: Minho, Lima, Cávado e Ave. Então, a província ou a região do Minho tiram o nome de um rio mas sob a forma de abreviatura.
Nenhuma região do tamanho da que estamos a abordar seria estranho ir buscar o nome a um rio que faz fronteira, ainda por cima palco de escaramuças e rivalidades em tempos idos. Ribatejo são ambas as margens do Tejo, o Douro é toda a bacia do rio desse nome, etc. Por isso Minho só pode ser a abreviatura de “Entre Douro e Minho”, nome pelo qual, durante séculos, se conhecia o território que vinha do norte, da fronteira com a Galiza, até à zona do Ave. O Minho região conta com uma individualidade muito marcada e única. Tudo começa com o clima, o mais húmido do país. A água em abundância faz a terra muito fértil, o que, aliado à orografia (as planícies extensas são raras), gera uma terra de minifúndio. As culturas mostram-se então intensivas[1] e diversificadas, acumulando-se ao longo dos tempos. Lá para o século XVI apareceram as oliveiras[2] e ficaram, veio o milho da América e as batatas e ficaram para sempre, muitas outras plantas como os citrinos chegaram e ficaram. Até aos dias de hoje, em que foram os kiwis a aparecer e a ficar. E tudo resulta, Por isso o Minho é, sempre foi, zona densamente povoada.
Ter regularmente gente por perto espanta as solidões nostálgicas. E se pode criar conflitualidade e levar à manhosice, faculta a convivência e a cooperação, a diversificação de tarefas e o fervilhar de actividade. É dizer, enriquece em termos culturais. Daí, claro, a multiplicação dos mestres de ofícios e, para o que nos interessa agora, a criação de um artesanato muito rico.
No Minho a mulher domina, talvez por influência celta. A Deu-la-Deu Martins ou a Maria da Fonte só podiam ser minhotas. No âmbito doméstico há sempre “a minha patroa”, e quem o diz é o homem. Os santuários marianos são aqui mais que muitos, e a própria religiosidade, de prática tão intensa e antiga, concentra-se fortemente “nas Senhoras”. Da Peneda, da Bonança, da Agonia, do Minho, da Boa Morte, da Lapa, do Castelo, da Abadia, de Bouro, do Sameiro, da Falperra, da Saúde, da Lapinha, da Penha, da Oliveira, e de certeza que há mais.
Pode ser que as guerras tivessem ficado sempre mais longe do Minho do que de outras regiões de Portugal, e que o homem minhoto não tivesse que ser guerreiro. Que o estatuto de maior igualdade homem-mulher se tivesse implantado cedo. Que a forte imigração tivesse deixado as mulheres entregues a si próprias. Afinal o Minho é o fervilhar da vida e a mulher continua símbolo de fecundidade [3]. A mulher está sempre presente na obra de Sarah Afonso. Feminilidade e maternidade impregnam-na.
Por outro lado os minhotos tinham que reflectir a paisagem que os rodeia e por isso são alegres. A pintura de Sarah tem sempre cores alegres. Importa, já agora falar dessa pintura.
Os quadros que a presente exposição nos mostra podem situar-se no que se convencionou chamar modernismo português, concretamente da sua primeira metade. Já se viu que esta produção de Sarah Afonso foi fortemente inspirada pela arte popular minhota e o resultado é um lirismo e simplificação de meios, que lhe dão conotações claramente “naïf”.
A semântica de “Moderno”, “modernidade” ou “modernismo” arranca de uma categoria temporal, para acentuar a oposição ao antecedente com consciência de uma ruptura. As obras, as épocas ou os movimentos artísticos com essa conotação distinguem-se do simplesmente “novo” que ainda é compatível com uma evolução na continuidade. Mas, mais do que isso, o moderno pretende a demarcação e portanto ou se é pro ou se é contra. Traduz-se por outro lado num consenso, sendo portanto um “actual colectivo”[4].
Em Portugal, houve toda uma geração de artistas nascidos no fim do séc. XIX, ou princípios do seguinte, com o propósito assumido de se emanciparem de um realismo que vinha de trás, dominado pelo naturalismo paisagista ou pelo retratismo convencional. Coexistiram com grandes artistas que se mantiveram apegados a valores de continuidade (Columbano, Malhoa, Carlos Reis, por exemplo).
O modernismo de um primeiro tempo foi dominado por figuras como Amadeo de Sousa Cardoso, Santa Rita, Almada, Abel Manta ou Eduardo Viana e por uma plêiade importante de desenhadores caricaturistas. Paris era o farol e nos nossos compatriotas faziam-se já sentir influências cubistas, futuristas quando não dadaístas.
No primeiro Salão dos Independentes, já em 1930, expuseram dezenas de artistas, pintores, escultores e arquitectos, que “olhavam para as coisas sem óculos académicos” (António Pedro) e entre os quais se contava gente mais nova, a segunda geração modernista que incluiu a nossa Sarah Afonso.
Sarah tinha um estilo muito próprio – ninguém pintara até então como ela – e ficou conhecida, de facto, pela sua inspiração popular minhota. É toda a infância passada em Viana que volta, num lirismo cheio de emoção, usando cores fortes, para representar cenas de um quotidiano rural banal, mas pacífico, alegre, satisfeito. Um mundo que não era afinal o mundo real da artista, mas que ela pode ter ido buscar, quiçá, para fugir a esse mundo real.
Como sempre aconteceu, pessoas há que têm menos proventos ou apenas menos cultura que outras, o que se reflecte ao nível de uma menor educação artística. No entanto, tal não significa que sejam desprovidas de sensibilidade estética e não queiram comunicar através da arte. Ao que produzem e consomem convencionou-se chamar arte popular.
E, se durante séculos a arte popular caminhou paralelamente com a arte mais erudita, o que aconteceu é que, por força da democratização, maior igualdade social e da comunicação generalizada, por um lado apareceu uma “arte de massas” que nada tem a ver com a arte popular. Esta, por outro lado, reduziu-se a um nicho cada vez mais pequeno, muito alimentado do passado. É assim hoje.
Mas já no tempo de Sarah, a arte dita culta passou a interessar-se e a inspirar-se, aqui e ali, na arte popular. Porque se viu nesta uma simplicidade da representação, imbuída de ingenuidade e frescura, que só por isso seduz.
Há então artistas que pintam mais tosco, não porque não soubessem “fazer bem”, que usam cores primárias e pouco variadas, não porque não dominassem uma paleta sofisticada, que escolhem assuntos triviais, não porque ignorassem os grandes temas da cultura. Com as suas formas simplificadas, deformadas, ou toscas e todo um colorido muito vivo ajudam-nos, no fundo a uma evasão refrescante.
Na pintura de Sarah há um claro encantamento pela arte popular, mas o que ela fez não é arte popular, nem verdadeiramente imitação de arte popular. Vê-se claramente em todos os desenhos e retratos expostos e o mesmo é denunciado subtilmente pela sua demais pintura. Sarah Afonso criou um universo muito próprio inspirado na arte popular do Minho, nada mais.
O que teria sido Sarah se não tivesse chegado aos quarentas e interrompido a sua carreira de pintora? Claro que não sabemos.
Sabemos que enveredou por um estilo único, que o seu coração era minhoto, que foi uma artista de valor, uma grande mulher. E isto já não é nada mau…
© Foto de capa de Pedro Pina
Exposição Sarah Affonso e a arte popular do Minho – até 7 de Outubro
Informações úteis:
Site exposição: Museu Gulbenkian
Localização: Av. de Berna, 45A, 1067-001 Lisboa (Mapa Google)
Galerias do Museu e Galeria do piso inferior
Contacto: +351 21 7823000
Horário: 10:00 – 18:00. (Encerra à terça).
Bilhetes: 3,00 €
[1] As latadas e o enforcado não são só forma de ventilar as uvas salvando-as da humidade excessiva, porque permitem também outras culturas em baixo.
[2] O Minho é talvez a única região de Portugal sem característica mediterrânica alguma.
[3] “O que distingue o Minho das outras regiões portuguesas é talvez esta prevalência da reprodução. Da terra, das plantas, dos animais e dos homens. De tudo o que é vivo. Como um instinto ou um destino, talvez, mais do que como um valor. Como uma espécie de mimetismo da capacidade de reprodução vegetal nesta terra constantemente adubada, estrumada, irrigada e que constantemente se desentranha em frutos”. José Mattoso, Suzanne Daveau e Duarte Belo in “PORTUGAL – O Sabor da Terra”. Temas e Debates, Círculo Leitores, 2010.
[4] Cf. Étienne Souriau in “Vocabulaire d’esthétique”, pág.1018, PUF, 1990.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
Conheça melhor a Brotéria