Desde os finais dos anos 90, a Inteligência Artificial (IA) recebeu um enorme incentivo com o desenvolvimento do que hoje é conhecido por Machine-Learning. Vivemos já tão imersos no paradigma da IA que, de forma palatina, autorizamos a sua entrada no nosso dia-a-dia sem questionarmos a difícil equação dos custos/benefícios. A pergunta é simples: A IA contribui ou não para o bem da humanidade? Esta foi a questão que a Santa Sé quis fazer no encontro que promoveu no Vaticano nos dias 25 e 26 de fevereiro, intitulado Robot-Ethics. Um encontro admirável que reuniu vários especialistas de renome mundial, entre os quais os professores R. Gingolani, Aude Billard, Ishiguro, Honda, entre outros, para discutir possíveis cenários para uma humanidade imersa nas novas potencialidades da IA.
A primeira pergunta que tem de ser feita é: o que é que a IA promete de tão novo e radical com o machine-learning? Para explicar de forma simples, temos no imaginário que uma máquina ou um computador é sempre algo que obedece a uma lista rigorosa de regras pré-determinadas pelo seu programador. Com o machine-learning este cenário muda. Muda a partir do momento em que o ´programa´ tem a capacidade para adaptar-se a diferentes circunstâncias. Desta forma, os programas (e respectivos algoritmos) não são caracterizados pela sua ‘rigidez’ mas por uma enorme flexibilidade, permitindo criar um resultado atendendo às especificidades de uma dada situação. Portanto, adaptabilidade e flexibilidade dos algoritmos é a grande novidade do machine-learning.
Por exemplo, o GPS. Este sistema de navegação não só nos indica o trajecto desejado como também o melhor percurso de acordo com o trânsito, a existência de obras, ou outras circunstâncias, de forma a optimizar o resultado. Outro campo é a introdução da cirurgia robótica, no sentido em que já é comum encontrar cirurgias que são apenas supervisionadas por um (ou mais) cirurgião que se mantém numa consola que lhe permite ver e, nomeadamente, orientar a actividade robótica. Em algumas cirurgias já é possível o uso de tecnologia autónoma em que simplesmente não é necessária nenhuma assistência humana. Finalmente, outro campo é o da indústria militar, com a promessa de novos sistemas armados capazes de identificar, seleccionar e abater alvos militares sem a necessidade de ter soldados no terreno.
O desenvolvimento pode ser tal que pode vir a ser legítima a pergunta: até que ponto, no futuro, não teremos novos “agentes” ditos artificiais que partilham com os humanos as tarefas quotidianas?
O desenvolvimento pode ser tal que pode vir a ser legítima a pergunta: até que ponto, no futuro, não teremos novos “agentes” ditos artificiais que partilham com os humanos as tarefas quotidianas? Neste sentido, o Parlamento Europeu deu um passo, absolutamente questionável, ao qualificar robots autónomos como “pessoas electrónicas”. O que significa qualificar um robot como “pessoa”? Exactamente o que é um robot? Por incrível que pareça, a discussão entre os conferencistas revelou que ainda hoje não sabemos definir o que significa ser ‘pessoa’ como categoria universal.
Para o campo da teologia cristã, a tecnologia é percebida como um ‘instrumento’ ao serviço do homem e da sua dignidade e esta relação não pode ser invertida. No entanto, no furor de alguns debates, vê-se dito e escrito que a IA pode permitir que ‘sistemas’ (por exemplo, carros; armas etc) possam tomar decisões. Ora bem, uma decisão implica agência moral que é o fundamento da responsabilidade. Não responsabilizamos crianças e animais porque lhes falta precisamente agência moral. Mais ainda, na situação de sistemas artificiais. No entanto, o enquadramento cristão não é a única voz presente no debate internacional.
Um campo particularmente relevante tem sido a utilização de robots com doentes que apresentam problemas do foro psíquico, nomeadamente, com Alzheimer, no Japão. Os resultados produzidos são muito satisfatórios no que diz respeito ao aumento da interacção dos doentes com o mundo exterior. A indústria e a investigação levada a cabo pelo Japão também tem vindo a trabalhar no campo dos ‘wet-robots’, robots feitos na totalidade ou em parte de matéria orgânica. A importância do exemplo japonês prende-se, não apenas com o carácter pioneiro da sua investigação, mas, igualmente, com o facto da cultura nipónica encontrar os seus fundamentos morais no ‘Xintuismo’, segundo o qual o uso de robots e sistemas artificiais pode resultar num imperativo moral.
As considerações feitas até este momento visam apenas explorar as múltiplas visões e tradições que o tema da IA pode receber no seio da sociedade internacional. No debate organizado pela Santa Sé, ficou muito clara a urgência no diálogo aberto sobre as potencialidades da IA, o que é exclusivo do ser humano e o que possa ser um futuro de uma sociedade conjunta e partilhada por humanos e sistemas artificiais.
O discurso humano acaba sempre por encontrar uma espécie de inferno para nos ameaçar perante o futuro! Esta atitude parece-me enganadora para ler os sinais dos tempos e, sobretudo, para podermos dialogar com um futuro inevitável. É fundamental aceitar o facto de que a tecnologia tem vindo a transformar a vulnerabilidade humana desde sempre e, cada vez, de forma mais acentuada. Lamentamos todos os dias a falta de uma tecnologia que nos permita ser mais livres…mas essa liberdade, a delegação de actividades humanas na tecnologia, tem o seu preço. É esse risco/ potencialidade que devemos ter a coragem de questionar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.