Rentrée – Editorial Brotéria agosto/setembro

Ao voltar ao “já visto”, não ponhamos o crachá e “mais do mesmo”, levantemos a cabeça para a podermos baixar com olhos novos, abertos à surpresa que não virá de fora, mas da atitude que o descanso conquistou.

Ao voltar ao “já visto”, não ponhamos o crachá e “mais do mesmo”, levantemos a cabeça para a podermos baixar com olhos novos, abertos à surpresa que não virá de fora, mas da atitude que o descanso conquistou.

Recomeçar 

Reiniciar

Voltar à luta

Renascer

Nascer de novo

Ressuscitar

São estes os verbos que me ocorrem no tempo que corre. Este é o tempo favorável, tempo de regresso, de retoma, de rentrée! Quem não tentou encontrar algum tempo de descanso, desejando férias grandes para, depois, retomar os desafios do dia a dia com novas forças e cara lavada, restaurado para contar histórias e aventuras, talvez justificado pela bandeira do “só avança quem descansa”?

Com este texto, pomo-nos ao lado de quem regressa ao urbano quotidiano, tantas vezes ainda cansado por não ter sonhado tudo e já sentir, nos ombros e na alma, o peso dos fantasmas e das comparações que estão para vir.

Com este texto, pomo-nos ao lado de quem regressa ao urbano quotidiano, tantas vezes ainda cansado por não ter sonhado tudo e já sentir, nos ombros e na alma, o peso dos fantasmas e das comparações que estão para vir.

Como é que cada um de nós descansa? Sair, não pensar, ter um tempo sem tempo onde todos concordam comigo e viajar, sem dores de estômago nem de cabeça. «Viajar! Perder países!», nas palavras de Fernando Pessoa, «Ser outro constantemente / Por a alma não ter raízes/ De viver de ver somente.// Não pertencer nem a mim!/ Ir em frente, ir a seguir/ A ausência de ter um fim,/ E da ânsia de o conseguir!».

Estaremos nós nessa onda? Viajar é ir ao encontro de si mesmo. Como quase tudo, é paradoxal. Até as palavras viajam e mudam de sentido. Nós, portugueses, trabalhamos nos dias de “féria”, ou de “feira”, que vem do latim feria, dia de festa: segunda-feira (féria), terça, quarta…etc. Assim se fixou uma ordem de um Bispo de Braga, no sec. VI, querendo que toda a Semana Santa fossem dias de paragem e de oração. Depois do Domingo (1ª Féria), viria a feria secunda, a terça, e assim por diante, usando o termo litúrgico para os dias da semana, desde o sec. IV, com o Papa S. Silvestre.

De facto, descanso está e acontece no encontro. No encontro com a natureza, com o essencial, com a verdade, nas relações humanas que nos restauram como pessoas, como seres de relação. Aí pode haver algum desgaste e até alguma morte do orgulho e das autossuficiências, por exemplo. Mas agora, ao voltar ao “já visto”, não ponhamos o crachá e “mais do mesmo”, levantemos a cabeça para a podermos baixar com olhos novos, abertos à surpresa que não virá de fora, mas da atitude que o descanso conquistou.

Recomeçar. Recomeçar não parece um bom verbo para indicar a atitude de fim de férias, de regresso ao trabalho. De facto, o que se começou não se torna a começar. É uma contradição. «Recomeçar não é repetir», diz bem Fabio Rossini no seu recente livro A Arte de recomeçar. Não somos o infeliz Sísifo. Se houve vida no trabalho e nas relações anteriores, essas não se apagam nem são para repetir. Estão presentes e a dizer que já existem e vão influenciar o que vier. A segunda parte do jogo não é o recomeço do jogo, é a sua continuidade.

Se houve vida no trabalho e nas relações anteriores, essas não se apagam nem são para repetir. Estão presentes e a dizer que já existem e vão influenciar o que vier. A segunda parte do jogo não é o recomeço do jogo, é a sua continuidade.

Reiniciar. Este verbo tem sabor a “máquina”, a “computadurez”. Nas máquinas talvez se possa vir ao zero. Apagar tudo, que vantagem traria? “Zerar” a memória, ser folha em branco é suspeito. Teria de se ser iniciado: isso só se se for outra máquina. Mas connosco não: nem se for outro o trabalho, outra família, outra vida.

Voltar à luta. Sim, talvez a vida tenha algo de luta continuada. Mas há sempre cicatrizes, feridas por fechar, ansiedades e medos, vitórias e aprendizagens por integrar. Teria de se entrar em campo consciente dessa mochila onde nem tudo está arrumado. Sim, há um saber de experiência feito, mas, por vezes, prega partidas.

Renascer. Fica bem, essa atitude de se levantar e olhar em frente. Todos caímos e todos somos frágeis. A diferença está nos que se levantam. Mas ninguém volta à barriga da mãe. Por um lado, cabe conhecer e reconhecer com humildade as fraquezas. Por outro lado, com a mesma verdade, é preciso invocar e abrir-se à esperança, isto é, dar corajosamente o próximo passo, saber com alegria que o melhor é o possível. A vida, nas suas etapas, está cheia de dores de parto.

Por outro lado, com a mesma verdade, é preciso invocar e abrir-se à esperança, isto é, dar corajosamente o próximo passo, saber com alegria que o melhor é o possível. A vida, nas suas etapas, está cheia de dores de parto.

Nascer de novo. Este é o segredo. Este é o mandato de Cristo ao velho Nicodemos (Jo 3), precisamente quando este o procurou triste, inquieto, inseguro, isto é, “de noite”. Na linguagem Bíblica “de novo” não significa “outra vez”, mas “de um modo novo”, com novidade. Agarrar a vida, o presente e o futuro de uma forma nova, realista e criativa. Cristo esclarece: é preciso tomar um novo ponto de partida, “de nascer do alto”, a partir do Espírito, do amor adulto e crente.

Agarrar a vida, o presente e o futuro de uma forma nova, realista e criativa. Cristo esclarece: é preciso tomar um novo ponto de partida, “de nascer do alto”, a partir do Espírito, do amor adulto e crente.

Ressuscitar. Tudo isto nos conduz à ressurreição para que somos criados. A ressurreição não é algo ou uma vida que nos vai acontecer depois a morte, mas sim a vida que adquirimos e desenvolvemos depois do egoísmo (ou com a sua morte). Por isso, os cristãos dizem que já ressuscitaram pelo Batismo ou, como diz também S. Paulo, quando morre em nós o que é carnal, egocêntrico, dando lugar à vida espiritual (1Cor 15), à nova vida de esperança e de amor. A ressurreição não é um evento, é um processo. Torna-se plena quando, pela morte física se superam os limites de espaço e tempo (e do pecado), encontrando cada um o Descanso eterno, a Comunhão desejada.

A ressurreição não é um evento, é um processo. Torna-se plena quando, pela morte física se superam os limites de espaço e tempo (e do pecado), encontrando cada um o Descanso eterno, a Comunhão desejada.

Porque não vir de férias mais ressuscitado? Esta é a questão. Ter tempo, modo e espaço para cada um se tornar pronto e disponível para novas relações; deixando-se tocar pelo bem, sair de si, como quem usa um novo ponto de partida, o da fé e da Verdade. Ou seja, o da realidade que é mais importante que a ideia, como vem repetindo o Papa Francisco. Do próprio Jesus Cristo se diz na oração do Credo cristão que «de novo há de vir», não outra vez em carne e osso, mas «na sua glória», de um modo completamente novo, com uma presença ressuscitada, inteiramente descansada.

Lembro um texto clássico que será bom ler de novo, “If”, “Se”, de Rudyard Kipling (1895): «Se puderes ficar sereno quando todos tua volta perdem a cabeça e até te lançam a culpa… Se és capaz de ver cair por terra as tuas obras e retomar o teu ideal com ferramentas gastas (…) Então, serás um homem, meu filho».

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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