Num processo eleitoral democrático, como aquele que estamos a viver, temos diante de nós uma escolha pessoal, com profunda implicação na sociedade. Será possível – inspirando-nos na tradição espiritual inaciana – enunciar alguns princípios e critérios que ajudem a formar uma opinião e consequente escolha, ao aproximar-se um ato eleitoral?
Santo Inácio de Loiola desenvolveu uma autêntica atividade política, isto é, envolveu-se intensamente na “polis”, não se esquivando aos assuntos relevantes da “cidade” e da sociedade do seu tempo. Prova disso é o seu extenso epistolário. Para além das questões de ordem espiritual, as quase 7.000 cartas inacianas tratam, em número considerável, de assuntos económicos ou “políticos”. E toda esta atividade coexistia com uma profunda vida espiritual. Na sua forma de ser e estar, Inácio desenvolveu um modo de proceder que tanto o tornava próximo dos problemas de um mendigo ou de alguém que buscava conselho, como do Papa ou de um rei, sem com isso perder a liberdade e o foco espiritual. Referindo-se ao modo de fazer uma escolha pessoal importante (que designa como “eleição”) escreve o seguinte: “em toda a boa eleição, quanto é da nossa parte, o olhar da nossa intenção deve ser simples, tendo somente em vista o fim para que sou criado, a saber, para louvor de Deus nosso Senhor e salvação da minha alma; e assim, qualquer coisa que eu eleger deve ser para que me ajude para o fim para que sou criado” (E.E. 169).
“em toda a boa eleição, quanto é da nossa parte, o olhar da nossa intenção deve ser simples, tendo somente em vista o fim para que sou criado, a saber, para louvor de Deus nosso Senhor e salvação da minha alma; e assim, qualquer coisa que eu eleger deve ser para que me ajude para o fim para que sou criado” (E.E. 169).
Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio apresenta um conjunto de princípios operativos a que dá o nome de “regras”, “notas” ou “preâmbulos”. Procura, assim, ajudar quem se exercita a lidar com aspetos essenciais da vida espiritual: escolhas, percepções e decisões interiores, formas de falar ou de olhar para diferentes questões. O propósito desses enunciados é ir além das emoções básicas, e seus possíveis auto-enganos, desordens ou tentações, permitindo ao sujeito um modo se entender e de agir que tenha futuro – “sustentável”, diríamos hoje – e sobretudo coerente com o seguimento de Jesus. Os títulos inacianos, mesmo em linguagem do século XVI, são elucidativos: “Preâmbulo para fazer eleição (…). Para tomar conhecimento de que coisas se deve fazer eleição” (Exercícios Espirituais 169-170); “Regras para se ordenar doravante no comer” (E.E. 210); “Regras para de alguma maneira sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma: as boas para as aceitar e as más para as rejeitar” (E.E. 313); “No ministério de distribuir esmolas devem-se guardar as regras seguintes” (E.E. 337); “As notas seguintes ajudam a discernir e compreender os escrúpulos e as insinuações do nosso inimigo” (E.E. 345); “Para o verdadeiro sentido que devemos ter na Igreja militante, guardem-se as regras seguintes” (E.E. 352). Será possível aplicar a sabedoria presente nestes enunciados ao dever cívico de votar? É isso que vamos tentar em seguida.
Em primeiro lugar, caio na conta de como me encontro pessoalmente: em consolação ou em desolação? Sou guiado por emoções como a raiva, medo, tristeza, desconfiança, inércia? Ou consigo “agir contra”, dando espaço aos seus “contrários”: a construção da paz, o ânimo, a confiança, a generosidade e espírito de serviço? Reagir a possíveis desolações requer paciência e inteligência. O que quero que determine a minha escolha? Quais as motivações de fundo… que “espírito” me aconselha? Consigo identificar as tentações que me podem condicionar, e mesmo enganar, no momento de fazer a minha escolha?
Em segundo lugar reparo no contexto social e político em que nos encontramos: vamos de bem a melhor… ou de mal a pior? Não deixar de louvar o que é de louvar, e de agradecer o que é de agradecer. Nem de reconhecer onde estão os problemas, agressões e desvios do foco que dá futuro e esperança. Consigo apontar alguns exemplos concretos?
Em terceiro lugar concentro-me nas ideias e propostas dos programas que estão no meu campo de escolha. Isto porque lhes reconheço alguma razoabilidade, bondade e coerência com aquilo em que verdadeiramente acredito, também ao nível espiritual. O que esses programas políticos defendem e propõem é viável e exequível? É importante estar atento às “aparências de bem”, observando o princípio, meio e fim dos processos. Por fim, não me deveria deixar tomar por extremos demagógicos, sectários ou ideológicos, que podem dizer uma parte da questão, mas não têm como foco a construção do bem comum: o conjunto das condições da vida social que permite aos grupos – e a cada um dos seus membros – atingir mais fácil e plenamente o cumprimento da sua finalidade.
Em quarto lugar observo os protagonistas políticos das propostas em ponderação. O conjunto de pessoas que as defende é credível? Existe capacidade real de as pôr em prática? Isto é, a liderança que propõe determinado projeto político “sabe, pode e quer” governar bem… ou pelo menos dá sinais de o conseguir fazer? No meio de tudo isto, é muito necessário prestar atenção à forma de reagir, e de me proteger, do “ruído mediático” e dos sound bytes. Há modos de falar que ajudam a clarificar questões e problemas, mas há outros que só confudem.
Em quinto lugar pergunto-me como é que os outros “entram” na minha escolha. Pondero o bem maior, que é o bem comum, ou apenas aquilo que “resolve a minha situação”? A minha participação política – formando opinião e comprometendo-me, juntamente com outros – é um modo de trabalhar com humildade, fortaleza e confiança por tempos melhores. O voto é o meu contributo para enfrentar os problemas sociais do nosso tempo: o cuidado da “casa comum” e seus habitantes, a erradicação da pobreza, a defesa da vida e da família, os modelos de educação e sociedade, o crescimento sustentável das condições de vida e trabalho na cidade e no campo, questões globais como as migrações e a paz…
Em sexto lugar preparo-me para lidar com dilemas de consciência acerca de escolhas que não são perfeitas. Muitas vezes o “melhor” não está no boletim de voto e sou forçado a optar pelo menos mau… Por isso, o momento da escolha deve ser ponderado e sereno, e não agitado ou precipitado. Existem, até, alguns exercícios que ajudam a “desempatar”: se alguém de quem gosto, e que considero, me viesse pedir conselho, o que lhe diria? A opção tomada faz sentido com aquilo em que profundamente acredito, e deixa-me pacificado?
É bom lembrar que, para os cristãos, o único salvador é Jesus Cristo. E também que a democracia é o pior dos sistemas políticos, com excepção de todos os outros (como afirmava Churchill). Porém, é essencial que a escolha feita não vá contra as minhas convicções de fundo. O esforço de formar a consciência moral e cívica – com o contributo da Doutrina Social da Igreja – ajuda a superar dúvidas e escrúpulos. Finalmente, a minha escolha deveria ser inspirada no amor, e não no temor ou outra motivação menos nobre. Pois, como afirma o Papa Francisco: “A política é a forma mais alta, maior, da caridade. O amor é político, isto é, social, para todos”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.