Para começar de vida, ele fez um círculo perfeito. Sem nenhum instrumento de precisão, apenas com tinta e o desejo de fazer ser.
Estamos na era dos programas, do software que nasceu para ajudar a fazer; mas que agora nos programa a nós mesmos – até que ponto? A época das aplicações, onde deixou de ser preciso aplicarmo-nos – algo, controlado não sei por quê ou por quem, nos programa. Mesmo os nossos utilitários de todos os dias têm um programa, que muitas vezes nos pedem para fazer um restart; um recomeço.
Quero recomeçar, digo. Autorizo-me isso a mim próprio? Esse gesto cortante, novo, criador, esbarra com uma série de programas. Eu já não sou o programador, mas o programado, sou o plano de uma aplicação para mim; estão a correr uma série de funções onde eu só funciono, não sou. Em que botão recomeço?
Enquanto os outros se aplicavam em complicados desenhos, ele fez um círculo, um círculo apenas, pincel e vermelho sobre o branco, uma espécie de sangue. “É só isso?”, perguntou o homem. “É tudo o que é necessário”, respondeu o pintor.
O círculo da minha vida, a multidão – a legião – de programas onde me aplicam: sou eu? Ou uma função de mim, útil a não sei quem quando ou quem quê, cerca a roda dos meus dias?
O homem agarrou nos elaborados desenhos feitos pelos outros pintores, e naquele desprezadamente no outro papel, o do círculo vermelho apenas. Levou-o ao Papa, que dentre todos escolheria um novo pintor para trabalhar em Roma.
Quero recomeçar, digo. Autorizo-me isso a mim próprio? Esse gesto cortante, novo, criador, esbarra com uma série de programas. Eu já não sou o programador, mas o programado, sou o plano de uma aplicação para mim; estão a correr uma série de funções onde eu só funciono, não sou. Em que botão recomeço?
Voltar já não serve. Listas de alterações, promessas secas num papel que não enviarei a mim mesmo, não. Voltar é voltar a, repetição. Há programas que fazem isso por mim. Quero ser eu a começar, a começar-me. Faço isso agora ou deixarei que o círculo feito por instrumentos de outros me cerque tanto até que me controle?
Ao ver o círculo, “uma maravilha a contemplar”, desenhado sem nenhum instrumento, o Papa não hesitou: era aquele pintor que queria. Ele mesmo: Giotto.
Cada minuto é meu; cada gesto é orgânico. Em cada respiração crio e levo para dentro de mim, entregando à origem, o ar que me deu. Eu sou eu próprio uma árvore: raízes na terra, pulmões da terra para o céu, braços para tocar no firmamento. Inspiro para deixar a minha marca, para trazer o infinito em cada inspiração, e devolvê-la nova ao ar vivo.
“Construir um eremitério portátil dentro de cada um de nós”, escrevia o imperador austríaco Francisco I. Quero encontrar aí o ponto onde eu começo. Onde eu desenho com o meu sangue o meu caminho; onde sou o co-criador de mim mesmo.
O pintor desenhou o seu início. Abriu o universo, entregou-o: e criou.
Bruxelas, 2 de Setembro de 2018
Scarlatti, Sonata K. 380
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.