Quero contar-vos de um milagre

Deus está aqui. Está neste silêncio a que nos obrigou. Nesta pausa que nos interpela. Nesta responsabilidade de estarmos à altura do que nos é pedido… mesmo quando não temos a força para inventar novas perguntas ou de ousar novas respostas.

Deus está aqui. Está neste silêncio a que nos obrigou. Nesta pausa que nos interpela. Nesta responsabilidade de estarmos à altura do que nos é pedido… mesmo quando não temos a força para inventar novas perguntas ou de ousar novas respostas.

Oiço carros ao fundo, há movimento lá fora. No entanto, menos do que o movimento que tenho dentro do que julgo ser.

Escrevo-vos numa quinta-feira, são cinco horas da tarde.

Ontem estava diferente do que estou hoje. Há dias em que não gostamos tanto do que vemos no espelho que apenas reflete o que em nós é ausência de imagem. Estava pior do que hoje, escrevia… triste, amargurado com a falta de respostas, sem paciência para novas perguntas, com dificuldade em estar à altura da felicidade dos meus filhos bebés, com ainda maior dificuldade em estar à altura do desafio de os amparar a todos, bebés e crescidos, em cada uma das suas quedas.

Estava assim, com a Ana nas suas coisas e eu nas minhas. O amor da minha vida lia um jornal num telemóvel e eu, de comando na mão, passava por canais sem parar em nenhum, profundamente adormecido apesar de me sentir demasiado desperto para dormir. Resolvi procurar música numa plataforma, pensava nas “Variações Goldberg”, de Bach, interpretadas por Glenn Gould, um clássico. Mas alguma coisa me levou a pesquisar por músicas de festival da canção. Apareceu-me a que pedi, uma canção israelita de finais de 1970, e surgiu-me uma outra “L’oiseau et l’enfant”, cantada por uma francesa cum um nome que me foi familiar, Marie Myriam.

Sabem?

Estou a escrever-vos sobre um milagre.

A prova que tenho para vos oferecer sobre a existência de Deus está nestas linhas e no que ontem, quarta-feira à noite, me aconteceu num sofá de um apartamento, no Lumiar. A Ana percebeu pelos meus olhos o que estava a acontecer – mesmo que nada soubesse do que se passava.

“L’oiseau et l’enfant” era a música que a minha mãe me cantava antes de eu adormecer. Antes de casar com o meu padrasto, quando éramos apenas dois num quarto pobre de Campo de Ourique, ela cantava-me aqueles versos

Comme un enfant aux yeux de lumière
Qui voit passer au loin les oiseaux
Comme l’oiseau bleu survolant la terre
Nous trouverons ce monde d’amour

L’amour c’est toi, l’amour c’est moi
L’oiseau c’est toi, l’enfant c’est moi

 

A nossa canção.

A canção que esqueci quando deixámos de ser apenas um do outro. A canção de que não me lembrava quando escrevi “Mãe, promete-me que lês”, uma carta que quis partilhar com o mundo.

Quando mais precisava, quando a quarentena se erguia em mim como um Adamastor, quando uma tristeza pressentida começava a ganhar espaço, aquela canção resgatada a uma outra vida, a uma outra dimensão, fez-me acordar esta quinta-feira com a ideia clara de que mais nada merece a pena ser dito.

Deus está aqui.

Está neste silêncio a que nos obrigou. Nesta pausa que nos interpela. Nesta responsabilidade de estarmos à altura do que nos é pedido… mesmo quando não temos a força para inventar novas perguntas ou de ousar novas respostas. As perguntas e as respostas estão todas no milagre de estarmos aqui, em liberdade, fechados na imensidão de um mundo que nos transcende e nos obriga a ser maiores, única forma de poder voltar a ouvir canções que não conhecemos, canções de uma música que não se escreve com pautas ou palavras.

© Fotografia de  Gailhampshire – Cradley, Malvern, U.K – Blue Bird of Paradise Paradisaea rudolphi, CC BY 2.0,

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.