O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.
O debate suscitado recentemente a propósito desta disciplina curricular no ensino obrigatório em Portugal teve o mérito de promover o debate e alguma reflexão sobre a existência, e pertinência, da Educação para a Cidadania. O acolhimento desta discussão no espaço Ponto SJ com os objectivos enunciados no editorial corresponde, precisamente, a um dos fundamentos subjacentes à constituição programática desta disciplina. Partindo do pressuposto de que a educação não é, porque não o pode ser, ‘neutra’, afigura-se essencial, na perspectiva de uma sociedade democrática, a importância de promover um espaço seguro em que os jovens possam debater, interrogar, investigar, assuntos e temas pertinentes para a compreensão do mundo que nos rodeia. Abordar assuntos e temas controversos é, assim, um dos desafios que deve ser acolhido no âmbito da Educação para a Cidadania.
O século XXI trouxe para o nosso vocabulário alguns dos termos que caracterizam a complexidade do nosso mundo, várias vezes adjectivado de ‘distópico’, tal é a incredulidade com que assistimos a certos paradoxos, injustiças, e ao desfasamento flagrante entre certo discurso político, propagandista, e a realidade que observamos. ‘Alternativefacts’, ‘fakenews’, teorias da conspiração, ‘terraplanistas’, são alguns desses termos que alimentam a descrença na ciência e animam os discursos populistas. Ora, a escola não se pode alhear da vivência social, cultural e política do meio em que se insere, nem pode ignorar a abordagem de assuntos controversos (como este!) que os próprios alunos trazem para as aulas, em diversas disciplinas. Face ao ruído (des)informativo com que os alunos, e todos nós, somos bombardeados diariamente, amplificado pela tecnologia através das designadas ‘redes sociais’, torna-se um imperativo educacional contribuir para orientar os jovens a lidar com este contexto de modo equilibrado e directamente relacionado com o ensino dos direitos humanos e competências para a cidadania democrática. O reconhecimento deste imperativo pelo Conselho Europeu tem-se traduzido no apoio e desenvolvimento de vários projectos, publicações científicas, guias de orientação, materiais, entre outros exemplos de estímulo à Educação para a Cidadania, destinada especialmente aos países membros (ainda que a disciplina possa surgir com outras designações). Um dos mais significativos referenciais de suporte, o Reference Framework of Competences for Democratic Culture (Council of Europe 2018), constitui um dos resultados desse investimento crescente. Por outro lado, este esforço insere-se na abordagem preconizada pela OCDE, correspondendo ao objectivo 4.7 da Agenda 2030 das Nações Unidas, sublinhando a necessidade de estimular os alunos a analisar criticamente problemáticas da vida real, identificando soluções possíveis, recorrendo à criatividade e inovação. Veja-se, por exemplo, Preparing Teachers for Global Citizenship Education: A Template (UNESCO 2018).
Face ao ruído (des)informativo com que os alunos, e todos nós, somos bombardeados diariamente, amplificado pela tecnologia através das designadas ‘redes sociais’, torna-se um imperativo educacional contribuir para orientar os jovens a lidar com este contexto de modo equilibrado e directamente relacionado com o ensino dos direitos humanos e competências para a cidadania democrática.
Várias outras organizações têm desenvolvido trabalho valioso nesta área, por exemplo, a NECE (Networking European Citizenship Education), o European Wergeland Centre (EWC)… havendo ainda a registar, ao nível nacional, projectos interinstitucionais como ‘The Citizenship Education Project’ (2019-2022), da Universidade Católica do Porto e Fundação Gonçalo da Silveira, apoiado financeiramente pelo EWC e outros fundos, através da Gulbenkian, ou o recurso intitulado (2018) Global Schools. Propostas de integração curricular da Educação para o Desenvolvimento e Cidadania Global no 1.o e 2.o CEB, elaborado pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo em parceria com a Fundação Gonçalo da Silveira e o GRAAL.
Todos estes documentos sublinham a necessidade de promover competências de pesquisa, interpretação e análise, assim como estimular o desenvolvimento do espírito crítico como ferramentas com que se pretende capacitar os jovens-cidadãos. Ora, o espírito crítico consiste na capacidade de avaliar determinado pressuposto, ou informação, seguindo determinados critérios e sustentando as conclusões a que se chega, indo para além da mera opinião pessoal. Significa aprender a recolher informação, a identificar fontes fidedignas, a detectar enviesamento de opinião sem sustentação, e a tirar conclusões e avaliar com base em evidências e dados. Significa promover e exercer independência de pensamento, algo que se pode conseguir após reflexão e análise, aprofundando o conhecimento. Ou seja, competências a mobilizar contra a (re)doutrinação e a limitação … O exercício destas competências pode ainda contribuir para o desenvolvimento pessoal e emocional dos jovens, ajudando-os a clarificar as suas crenças e valores. Todas estas competências foram identificadas como sendo competências-chave pelo World Economic Forum (WEF)que coloca o pensamento crítico em segundo lugar na lista das dez mais importantes competências para a empregabilidade em 2020. Um Relatório publicado por esta instituição, WorldEconomicForum (2020), com o sugestivo título, Schools of the Future Defining New Models of Education for the Fourth Industrial Revolution, afirma ainda que é crucial que a escolas promovam o desenvolvimento de competências humanísticas – cooperação, empatia, consciencialização social, e cidadania global – de modo a possibilitarem a construção de sociedades inclusivas e mais justas.
O nosso mundo é feito de controvérsia e a escola faz parte do mundo, não existe num plano à parte. Pretendermos desviarmo-nos desta realidade não contribui para formar os cidadãos responsáveis, intervenientes e críticos que precisamos para a construção de sociedades democráticas, nem para o mundo do trabalho no séc. XXI (WEF). Pelo contrário, estaremos a contribuir para uma sociedade cada vez mais fracturada, em que cada lado se barrica na gritaria dos mesmos argumentos, e ninguém está disponível para ouvir, perguntar, dialogar, conversar, conhecer.
A escola é um espaço de socialização, onde essa experiência de convívio com a diferença, com a alteridade, constitui um subsídio importantíssimo na formação dos jovens, quer positivamente, quer negativamente. Por isso, cabe à escola ter um papel activo, integrando uma reflexão sobre temas como o racismo, ‘bullying’, homofobia, entre outros, num espaço próprio, mediado por um professor (que também é um educador), onde temas controversos na sociedade civil possam ser discutidos construtivamente e onde se aprendam estratégias e se desenvolvam competências argumentativas, e outras, de acordo com objectivos definidos.
É também muito positivo que pais e encarregados de educação se inquietem relativamente ao modo como determinados assuntos possam ser abordados; à (im)preparação dos professores que leccionam a disciplina; à possibilidade de se ferir a sensibilidade dos seus educandos. Por isso, o diálogo e colaboração dos encarregados de educação com as escolas e com esta disciplina é, não só desejável, como procurado nos objectivos desta unidade curricular.
A Escola não se entende como substituto da educação prestada pelos pais, ou encarregados de educação, dos jovens. Estas são dimensões complementares e é muito importante compreender e respeitar a correspondente esfera de actuaçãode cada uma. É natural que possa haver momentos de sobreposição, ou de algum conflito, mas o exercício do contraditório, a abertura ao questionamento deve ser entendida positivamente e construtivamente.
É também muito positivo que pais e encarregados de educação se inquietem relativamente ao modo como determinados assuntos possam ser abordados; à (im)preparação dos professores que leccionam a disciplina; à possibilidade de se ferir a sensibilidade dos seus educandos. Por isso, o diálogo e colaboração dos encarregados de educação com as escolas e com esta disciplina é, não só desejável, como procurado nos objectivos desta unidade curricular. O receio de (re)doutrinação, de um modo geral, parece corresponder mais a um medo hipotético já que nenhum dos inúmeros artigos publicados recentemente sobre a disciplina de Educação para a Cidadania refere algum caso concreto que pudesse ilustrar esses receios.
Certamente que haverá casos pontuais em que se poderá identificar algum desequilíbrio, ou excesso, relativamente à abordagem de alguns temas, pelo que a formação de professores especificamente dirigida a esta área disciplinar deve ser encarada seriamente como prioritária. É, contudo, necessário contextualizar estas situações não contribuindo para generalizações nefastas, e manter, ou iniciar o contacto com os docentes no sentido de aclarar problemas e buscar respostas, conjuntamente. Do mesmo modo, também nenhum desses artigos documentou ‘criticamente’ a oposição à existência desta disciplina, reportando-se, por exemplo, aos objectivos ou ao programa que se encontram com facilidade online. É que não há que ter medo da Educação para a Cidadania e a escolaridade não pode ser uma opção na nossa sociedade.
Nota: a autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.