Que Democracia para Portugal?

Publicamos o excerto de um texto do P. Manuel Antunes, sj sobre a Democracia em Portugal. Escrito mais de quatro anos depois do 25 de Abril de 1974 , ajuda-nos a compreender como se colocavam então questões que hoje continuamos a fazer.

Publicamos o excerto de um texto do P. Manuel Antunes, sj sobre a Democracia em Portugal. Escrito mais de quatro anos depois do 25 de Abril de 1974 , ajuda-nos a compreender como se colocavam então questões que hoje continuamos a fazer.

Na história dos povos, como na história dos grupos significa­tivos, como na história dos indivíduos, surgem, por vezes, momentos em que se põe o dilema radical: ou renascer ou morrer; ou conversão a uma outra maneira de ser e a uma maneira de se ser outro ou desaparecimento na necrose.

Portugal é chegado a um desses momentos. Mais de quatro anos volvidos sobre a revolta do 25 de Abril, revolta que viria a transformar-se, sobretudo a partir do 11 de Março de 1975, em revolução, essa alternativa põe-se com uma agudeza, uma pre­mência e, até, uma angústia a que não mais é possível fugir. Que quer o País? Que quer o Povo português? Que queremos nós? Queremos realmente uma comunidade nova, uma sociedade nova, um estilo de vida novo em que certos defeitos mais graves, certas carências mais significativas ou certas características mais negati­vas da nossa existência comunitária dos últimos tempos (de sem­pre?) sejam modificados, vão sendo modificados, com a graduali­dade que semelhantes transformações exigem, ou preferimos nós continuar a insistir neles, a erguê-los como valores e não a remo­vê-los como obstáculos, a assumi-los na prática, quando não na teoria, como a autêntica maneira de se ser português, como a autêntica maneira do nosso coletivo estilo de vida?

O País real

Antes de avançar demos um relance, embora fatalmente muito breve — demasiado breve para o efeito —, à realidade estrutural e conjuntural do nosso País.

Para começar, o dualismo nos marca. Não é tanto o dualismo Norte-Sul: é o dualismo litoral-interior. É a divisão entre uma faixa atlântica de aproximadamente 30 Km e o resto do espaço nacional. A primeira, bem povoada — por vezes mesmo super povoada, como nas áreas do grande Porto, da grande Lisboa e de Setúbal — e relativamente desenvolvida, com as estruturas próprias e os estrangulamentos próprios de uma sociedade que cresce rapidamente, pelo menos em comparação com o resto. A segunda — esse resto —, com a excepção de algumas pequenas ilhas ou ilhéus, atrasada, pobre, quando não subdesenvolvida.

Porém, as assimetrias não acabam aqui. Outras existem que importa revelar. Assim, só aproximadamente um terço da população portuguesa vive em cidades — das quais apenas duas de média dimensão, sendo as restantes simples burgos ou pouco mais do que burgos — habitando o restante em vilas e aldeias, por vezes, numa grande dispersão.

A estes dois — ou três — dualismos de fundo, outros vêm somar-se, em consequência ou não dos primeiros: o dualismo do género de vida e do nível de vida; o dualismo dos salários reais, demasiado altos uns, demasiado baixos os outros, apesar de todas as promessas feitas com o advento do novo regime; o dualismo, na economia, entre o sector público e o sector privado, tratado aquele, pelos poderes públicos, como filho e tratado este, pelos mesmos poderes, como enteado; o dualismo entre aqueles que tudo reivindicam porque tudo podem reivindicar e aqueles que nada reivin­dicam porque nada podem reivindicar sendo embora os mais desfavorecidos; o dualismo entre os sectores prósperos da economia — poucos e situados, as mais das vezes, no sector privado — e os sectores em crise — a maioria, que engloba os pontos-chave do sistema da criação e da repartição da riqueza nacional; o dualismo entre as classes privilegiadas e as não-privilegiadas que não são exactamente as mesmas que eram há quatro anos.

Para além destes múltiplos e diversos dualismos cuja enumeração poderia facilmente continuar, Portugal regista uma das taxas de desenvolvimento mais baixas de toda a Europa, regista a mais elevada percentagem de desemprego, regista o menor índice de investimentos,regista um dos maiores défices estatais, regista um dos mais altos níveis de inflação, regista um modestíssimo índice de produtividade, regista, apenas em termos económicos, muitas outras coisas negativas que muito nos aproximam do colapso ou, o que é talvez pior, cada vez mais nos hipotecam, nós e a nossa independência, ao estrangeiro.

Tudo isto à sombra de uma Constituição que será, porventura, “a mais democrática do Mundo”, mas que é também, sem grandes margens para dúvidas, incerta, contraditória, idealisticamente programática mas escassamente realista, cheia de boas intenções — de excelentes intenções! — mas também percorrida de lés-a-lés, de “ses” e de “mas”, de alçapões e de fugas por onde se pode evaporar a essência do que ela possui de melhor.

P. Manuel Antunes, sj - 1978

Como consequência, directa ou indirecta, deste estado de coisas a que “alegremente” fomos chegando, rasga-se por todos os lados, uma nada pequena desagregação do tecido sócio-económico, tornando difícil, quando não, em certos casos, impossível a cooperação dos agentes e factores de riqueza nacional; aumentam, por vezes em flecha, as forças improdutivas, designadamente no sector terciário — o dos serviços —, que, ao serem improdutivas, não raro se tornam impeditivas (quatro fazem menos que dois); multiplicam-se as mais diversas formas de trabalho não-organizado e/ou a fingir; abrem-se, a cada esquina, boqueirões por onde se somem, quase sem se dar por tal, bens e energias, créditos monetários e créditos pessoais.

Tudo isto à sombra de uma Constituição que será, porventura, “a mais democrática do Mundo”, mas que é também, sem grandes margens para dúvidas, incerta, contraditória, idealisticamente programática mas escassamente realista, cheia de boas intenções — de excelentes intenções! — mas também percorrida de lés-a-lés, de “ses” e de “mas”, de alçapões e de fugas por onde se pode evaporar a essência do que ela possui de melhor.

E o estado moral da Nação? Sem querermos ceder ao pessimismo, diremos que, a este nível, as coisas correspondem, grosso modo embora, ao nível social e económico descrito. É o descrédito — terrivelmente perigoso — de uma classe política, pouco preparada, que rapidamente ascendeu e, não menos rapidamente está a declinar a olhos vistos, devido à incompetência, ao oportunismo, ao demagogismo e à excessiva partidarização dos seus quadros. É o desencanto ante o muito que se prometeu, no concernente à saúde, à educação, aos transportes, às assimetrias regionais, à habitação, ao nível e estilo de vida, à justiça social para todos, o muito que se prometeu e o muito pouco que se realizou em todos esses domínios, apesar dos meios financeiros, que de início, não faltavam ou, quando viessem a faltar, o estrangeiro não teria dificuldades de maior em cobrir, para investir em infraestruturas necessárias à modernização, de um país que reencontrava, após séculos de ausência, o seu destino europeu.

 

É o sentimento de impotência para modificar um estado de coisas — em tantos aspectos deplorável! —, estado de coisas que um espírito crítico desperto e vigilante — felizmente bem — mas desgraçadamente incapaz de ser acompanhado de igual espírito criador e que de tal desfasamento se tornou consciente, aumentando assim a inércia, a impotência e o consequente não-te-rales.

P. Manuel Antunes, sj - 1978

É o sentimento de impotência para modificar um estado de coisas — em tantos aspectos deplorável! —, estado de coisas que um espírito crítico desperto e vigilante — felizmente bem — mas desgraçadamente incapaz de ser acompanhado de igual espírito criador e que de tal desfasamento se tornou consciente, aumentando assim a inércia, a impotência e o consequente não-te-rales. É a sensação da incapacidade de parar, menos ainda de transformar, a entropia da desordem, o domínio do oportunismo campeador, a indefinição de realidades concretas cuja clarificação não se compadece com delongas. É a percepção, vaga ou mesmo nitidamente sentida, das largas e fun­das divisões do País em todos os planos em que se desenrola a existência colectiva — individual, familiar, profissional, social, cultural, moral —, divisões até ao ressentimento, ao ódio, à “revanche”, à própria repressão do adversário, para tanto adrede convertido em inimigo. É a dúvida, com instâncias de permanecer, relativa à identidade e à viabilidade de um País que, apesar de ser dos mais antigos do Velho Continente, se interroga no entanto, resignado ou ansioso, sobre o seu próprio futuro ou sobre um destino que ele não sente de forma alguma garantido quer na sua unidade, quer na sua verdade, quer na sua solidariedade. É a desconfiança ante o crescimento desmesurado do gigantismo de um Estado que tem tido mais olhos que estômago — gigantismo que, pela lógica pró­pria do sistema, pode, de forma descoberta ou encapotada, ir absorvendo a sociedade civil tornando-se seu tutor ou seu padras­to, seu guia ou seu mestre, com todos os vícios da centralite e da burocratite, males endémicos do País, sobretudo de há dois sécu­los para cá, e agora espantosamente agravados. É o temor, a angústia e o medo ante o alastrar da anomia que, sobretudo nos grandes centros, campeia infrene sem que as forças da legalidade queiram eficazmente ou possam pôr-lhes um travão não rangente.

É a consciência, simultânea, de que essa anomia é circular, pelo menos em boa parte circular, de um estado de coisas caótico, corrupto e corruptor. É a memória, apesar dos meios utilizados para a delir e apagar, de uma descolonização que pouco teve de “exemplar” e muito de irresponsável, quando não de criminoso. É a revolta, surda ou declarada, contra a tentativa mais ou menos sistematicamente organizada, da demolição dos valores em que, durante séculos, a Grei acreditou: culturais, morais e religiosos. É a descrença pelo prémio, em certos casos, conferido a oportunistas, e pelo vitupério colocado como sambenito às costas de homens íntegros. É a verificação, cada vez mais patente, de que metade do País está a trabalhar para a outra metade, ao mesmo tempo que a justiça distributiva, assim como nos mecanismos de controlo e fiscalização dos meios produtivos e dos lucros daí provenientes. É a frustração pela constatação ou, quando menos, pela intuição de que o “bolo” é demasiado pequeno para repartir por todos ou de que a “manta” é demasiado estreita para a todos cobrir. É o inibi­cionismo de tantos produzido pelo demoliocismo de alguns, e é o exibicionismo de alguns produzido pelo resignacionismo de tan­tos. É a logorreia dos ineptos a entravar ou a esbanjar as energias dos competentes, dos honestos, dos realmente eficazes pelo mane­jo da mão e do cérebro na vontade de congregar, de construir, de edificar um País novo num Mundo que terá de ser cada vez mais novo sob a pena de ter de envelhecer morrer ingloriamente.

Ousamos avançar. Quase não há “corpo intermédio” significativo, espaço humano de sociedade e/ou de comunidade, que goze de boa saúde, que mantenha uma poderosa vitalidade, que encare o futuro sem apreensões. Ao menos no seu todo. Nem a Universidade, nem os sistemas educativo e sanitário em geral, nem a Empresa, nem as Forças Armadas, nem a própria Igreja. Todos sofrem de carências, de traumatismos, de desfasamentos, nos sentimentos de segurança e de confiança, sentimentos que são, simultaneamente, a rampa de lançamento e o motor de propulsão de um porvir melhor.

Ousamos avançar. Quase não há “corpo intermédio” significativo, espaço humano de sociedade e/ou de comunidade, que goze de boa saúde, que mantenha uma poderosa vitalidade, que encare o futuro sem apreensões.

P. Manuel Antunes, sj - 1978

Repetimos: “quase não há…”. Seria francamente abusivo gene­ralizar, extrapolar, universalizar. Uma vez mais: as excepções, que as há felizmente, só confirmam a regra. Mas, também, honesta­mente, é lícito acrescentar: à luz da história, é possível que as excepções se multipliquem tanto que elas venham a constituir a regra. Mas isso só acontecerá graças à lucidez dos responsáveis, à vontade de todos ou, pelo menos, da maioria, e à capacidade de mobilização de alguns para as tarefas de construção da Grei.

Nestes três requisitos se falhou não pouco nos últimos anos. Divisões, projectos contrários e contraditórios, caprichos e capri­chismos infantis, lançamentos pela borda fora de capacidades e bens nunca ou dificilmente recuperáveis, ocasiões de mobilização desperdiçadas, quanta coisa perdida ou adiada oxalá que nunca para as calendas gregas!…

Sintetizando esta descrição, a um tempo, demasiado longa e demasiado sumária e simplificadora: O passado não pode voltar e o presente não deve continuar.

In Repensar Portugal, Lisboa: Multinova, pp 75-100

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.