É claro, como dizia S. Teresa de Ávila, que rezar é “tratar de amizade, o mais das vezes estando a sós com aquele que sabemos que nos ama”. É provável que, por vezes, “não saibamos” que Ele nos ama ou, pelo menos, não o sintamos.
É claro – como convida o Papa Francisco no nº 3 da Evangelii Gaudium –, que a oração é o meio indispensável para “todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre”, para “renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que ‘da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído’. Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada”.
Nem sempre é claro que tomar a decisão de O procurar (ou de se deixar encontrar por Ele) é tarefa que a cada um diz respeito, pedindo o risco da nossa liberdade, não tanto como evento ocasional, mas sobretudo como perseverante “dia a dia sem cessar”, declinando conjuntamente a força da graça de Deus (gratuita, imerecida e incontrolável) e o intenso desejo humano de ver o seu rosto, de ser abençoado. Uma luta, pois!
Para rezar:
1. Começo por ler o texto do livro do Génesis (32, 25-33)
“Jacob tendo ficado só, alguém lutou com ele até ao romper da aurora. Vendo que não podia vencer Jacob, bateu-lhe na coxa, e a coxa de Jacob deslocou-se, quando lutava com ele. E disse-lhe: «Deixa-me partir, porque já rompe a aurora.»
Jacob respondeu: «Não te deixarei partir enquanto não me abençoares.» Perguntou-lhe então: «Qual é o teu nome?» Ao que ele respondeu: «Jacob.» E o outro continuou: «O teu nome não será mais Jacob, mas Israel; porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.» Jacob interrogou-o, dizendo: «Peço-te que me digas o teu nome.» «Porque me perguntas o meu nome?» – respondeu ele. E então abençoou-o. Jacob chamou àquele lugar Penuel; «porque vi um ser divino, face a face, e conservei a vida» – disse ele. O sol principiara a levantar-se, quando Jacob deixou Penuel, coxeando por causa da sua coxa. É por isso que os filhos de Israel não comem, ainda hoje, o nervo ciático que está na cavidade da coxa – porque Jacob foi ferido no nervo ciático da coxa, que ficou paralisado.” (Gn 32, 25-33).
2. Contemplo a pintura de Eugène Delacroix (1798-1863): “A luta de Jacob com o Anjo”
3. Algumas passagens da catequese de Bento XVI de 25 de maio de 2011
O texto é profundamente enigmático e, como explica Bento XVI, “este episódio tem lugar na obscuridade e é difícil reconhecer não apenas a identidade do agressor de Jacob, mas também qual é o andamento da luta. Lendo este trecho, é difícil estabelecer qual dos dois adversários consegue prevalecer; os verbos utilizados são muitas vezes sem um sujeito explícito, e os gestos realizam-se de modo quase contraditório, de tal forma que quando se pensa que prevalece um dos dois, a ação sucessiva desmente imediatamente e apresenta o outro como vencedor”.
O que não é difícil é ver retratada nesta fortíssima imagem “um ponto de referência para compreender a relação com Deus que, na oração, encontra a sua máxima expressão. A oração exige confiança, proximidade, quase num corpo a corpo simbólico não com um Deus adversário, inimigo, mas com o Senhor que abençoa, que permanece sempre misterioso, que parece inalcançável. Por isso, o autor sagrado utiliza o símbolo da luta, que implica força de espírito, perseverança e tenacidade para alcançar aquilo que se deseja”.
“Toda a nossa vida é como esta longa noite de luta e de oração, que deve ser consumida no desejo e na busca de uma bênção de Deus (…). E quando isto acontece, toda a nossa realidade muda, recebemos um nome novo e a bênção de Deus. (…) Aquele que se deixa abençoar por Deus abandona-se a Ele, deixa-se transformar por Ele e torna o mundo abençoado”.
4. Conclusão
Jacob sai desta noturna luta:
Ferido – não se sai incólume da oração. Deixa marcas, cicatrizes, memórias. Quanto de mim tenho posto na procura do rosto de Deus, da sua bênção?
Abençoado – quem arrisca, o Senhor não o desilude. Sei reconhecer e agradecer os acontecimentos e pessoas com que Deus me abençoa?
Um nome novo – na linguagem bíblica um nome novo aponta para uma nova identidade, uma missão. Para quem Deus me envia? De que boas notícias sou portador?
Recomeça…/ Se puderes, /Sem angústia e sem pressa./ E os passos que deres,/ Nesse caminho duro/ Do futuro,/ Dá-os em liberdade./ Enquanto não alcances/ Não descanses./ De nenhum fruto queiras só metade. (Miguel Torga, Sísifo)
5. Prolongamento
Talvez se possa prolongar esta oração escutando a peça Quatuor pour la fin du temps, de Olivier Messiaen (1908-1992). Esta obra foi composta no campo de concentração Stalag VIII A de Görlitz (na Polónia) para onde o compositor tinha sido deportado, e foi executada pela primeira vez no dia 15 de janeiro de 1941, sob a neve e em condições muito difíceis, diante de todos os prisioneiros do Stalag VIII A reunidos num pátio gelado. No prefácio o autor explica que o tema foi colhido do capítulo 10 do livro do Apocalipse: “E, nos dias em que se ouvir a voz do sétimo anjo – quando ele iniciar o toque da trombeta – então se cumprirá o desígnio de Deus, como Ele tinha anunciado aos seus servos, os profetas”.
Não será difícil imaginar o que a composição e execução desta peça significou de luta para o seu autor. E a profunda confiança de que a última e definitiva palavra é de Deus. Aliás, é isso que significa literalmente o nome de Israel (o nome novo dado por Deus a Jacob): Deus é forte, Deus vence!
Aceda aqui às propostas anteriores da rubrica Férias com Deus:
Proposta 1 – Só avança quem descansa
Proposta 2 – Dilatar o coração
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.