Na sequência da canonização do Cardeal John Henry Newman, no passado dia 13, devemos perguntar-nos qual a relevância deste novo santo da Igreja para os católicos de hoje. Proponho duas razões distintas.
Primeiro, é um homem que faz a ponte entre o anglicanismo e o catolicismo, podendo ser considerado, por isso mesmo, um dos pioneiros do diálogo ecuménico. Não é assim de espantar que Sua Alteza Real o Príncipe de Gales não só tenha assistido às cerimónias de canonização decorridas na Praça de São Pedro, como deixado o seu testemunho no jornal oficial do Vaticano, L’Osservatore Romano. Referindo-se a Newman, escreveu (tradução portuguesa do SNPC): “Como anglicano, guiou a Igreja de volta às suas raízes católicas, e, como católico, estava pronto para aprender com a tradição anglicana.” Segundo, Newman pode ser uma verdadeira inspiração quer para conservadores quer para liberais, se é que semelhante terminologia deva ser usada dentro da Igreja.
Para os conservadores, Newman consegue ser exemplo através da sua submissão à autoridade, neste caso ao dogma. Esta obediência custou-lhe muitas provações intelectuais e espirituais, mas no final foi decisiva para uma renovação da teologia dogmática. Para além do mais, reforça em nós a máxima evangélica de que o servo não pode ser mais do que o seu Senhor. Se este foi obediente até à morte, e morte de cruz (cf. Fl 8, 2), àquele não se lhe pode exigir outro tipo de obediência, independentemente de terminar em martírio ou não.
Para os liberais, Newman consegue ser exemplo através da importância que atribui à consciência individual. No final da sua famosa “Carta ao Duque de Norfolk”, escreve (mantenho o original em inglês para não se perder a força das expressões):
Certainly, if I am obliged to bring religion into after-dinner toasts, (which indeed does not seem quite the thing) I shall drink—to the Pope, if you please,—still, to Conscience first, and to the Pope afterwards.
Isto é música para os ouvidos de um liberal, mas não se pense que Newman está aqui a idolatrar a consciência ou a incentivar-nos a revoltarmo-nos contra a autoridade papal. Pelo contrário, Newman adverte-nos na mesma carta que a consciência não pode entrar em colisão direta com a infalibilidade da Igreja ou do Papa, que têm na definição do dogma e na condenação de todos os erros ligados à fé e à moral a última palavra. A liberdade de consciência não significa, de modo algum, um direito a ignorar o que é determinado pelo Juíz e Legislador desde o início (ver, por exemplo, Mt 19, 3-8) e que a Igreja, depois de instituída pelo Seu fundador, conserva através da sua Tradição e do seu Magistério.
O que Newman quer dizer é que a consciência é aquele espaço único de relação entre o homem e Deus, entre a criatura e o Criador, que nem mesmo o Papa ou toda a doutrina da Igreja têm o direito de violar.
O que Newman quer dizer é que a consciência é aquele espaço único de relação entre o homem e Deus, entre a criatura e o Criador, que nem mesmo o Papa ou toda a doutrina da Igreja têm o direito de violar. É óbvio que a consciência pode estar mal formada, mas aqui Newman seria o primeiro a convidar-nos a corrigi-la e a afiná-la pela doutrina da Igreja, que tem como fundamento a Revelação e a Lei Moral Natural. O católico não é juiz ou legislador de si próprio, pelo que esta só pode ser a sua obrigação. Já isto, um liberal não gosta de ouvir. No entanto, será justo também lembrar que a adesão à doutrina só pode ser feita de forma livre, nunca imposta. E aqui muitas vezes o conservador perde a paciência, sentindo, pensando e agindo como se todos tivessem que se submeter à doutrina à viva força. Ora, se Deus nos criou livres, é em liberdade que o devemos buscar.
Newman resgatou o papel da consciência de uma teologia que estava demasiado presa ao dogma, ao ponto de, depois dele, se falar de um personalismo teológico, que tantos ilustres teólogos fascinou e influenciou, entre eles Karol Wojtyła e Joseph Ratzinger, futuros Papas João Paulo II e Bento XVI, respetivamente. Este primado da consciência viria a ser crucial no “combate” aos regimes totalitários do século XX, que concebiam na ideia de partido único o fim e plenitude da história. “Eu não tenho consciência alguma! A minha consciência é Adolf Hitler”, disse um dia Hermann Göring. Também hoje, numerosas são as realidades em que temos de recorrer à objeção de consciência. Parte deste direito inalienável devemo-lo, sem dúvida alguma, a Newman.
A canonização do Cardeal John Henry Newman veio no tempo certo, pois dará ao autor de Apologia Pro Vita Sua a projeção que merece. Não que já não fosse bem conhecido nos círculos académicos e intelectuais — na Universidade Gregoriana, por exemplo, já se escreveram mais teses sobre Newman do que sobre qualquer outra personalidade —, mas como santo que agora é, envia aos católicos um sinal muito claro da via a seguir para uma reconciliação entre quem se sente mais conservador e quem se sente mais liberal. A falta de diálogo entre ambas as partes tem feito tanto mal à imagem da Igreja como muitos dos escândalos que a assolaram nos últimos tempos.
É por isto que precisamos de Newman, hoje mais do que nunca.
Imagem de capa: John Henry Newman de Sir John Everett Millais.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.