Património: o porta-paz do Espinheiro

A sugestão cultural da Brotéria convida-nos a olhar para uma das peças mais extraordinárias da ourivesaria portuguesa da produção artística do Manuelino: o porta-paz do Espinheiro da coleção do Museu Nacional de Arte Antiga.

A sugestão cultural da Brotéria convida-nos a olhar para uma das peças mais extraordinárias da ourivesaria portuguesa da produção artística do Manuelino: o porta-paz do Espinheiro da coleção do Museu Nacional de Arte Antiga.

“É uma das peças mais originaes da ourivesaria nacional e de lavor mais perfeito” (Arte religiosa em Portugal, fasc. n.º 13, Porto: Editores Emilio Biel, 1914.). É desta forma que Joaquim de Vasconcelos (1849–1936) – o fundador da História da Arte em Portugal alicerçada em critérios científicos – inicia um pequeno texto sobre um porta-paz em prata da coleção do Museu Nacional de Arte Antiga, proveniente do Mosteiro eborense de Nossa Senhora do Espinheiro. De facto, concebido por volta das décadas de 1520 ou 1530, o porta-paz em questão assume-se como uma das peças mais extraordinárias da ourivesaria portuguesa e, em particular, da produção artística filiável naquilo que se convencionou designar por Manuelino.

Tal se deve, em primeiro lugar, à qualidade do desenho e da composição observáveis nesta alfaia e à excelência técnica da sua execução; em segundo, ao facto da sua dimensão ser verdadeiramente fora do comum (56 cm de altura), comparativamente a outros espécimes da mesma tipologia existentes em Portugal (cerca de 20 a 30 cm); por último, por ser a verdadeira cabeça de série de uma categoria de alfaia paralitúrgica – o porta-paz – da qual, ainda que não absolutamente rara, não muitos exemplares chegaram aos dias de hoje no panorama português. E qual era, de facto, a função deste objeto relativamente pouco conhecido e já tão distante da liturgia dos dias de hoje? O liturgista beneditino D. António Coelho, no seu Curso de Liturgia Romana, esclarece o seguinte: “Desde que se suprimiu para os fiéis o ósculo da paz por meio de abraço, passou-se a transmitir-lhes a paz por meio da patena, e mais tarde por meio de um pequeno instrumento, ordinariamente de metal, em que está gravado um símbolo piedoso, e que tem por trás uma asa. Êste instrumento é requerido para dar a paz a um Cardial ou ao Bispo diocesano, quando assistem a uma Missa rezada; ao clero que assiste no côro a uma Missa cantada sem diácono nem subdiácono; a um príncipe que assiste solenemente a uma Missa qualquer; aos magistrados e outras personagens que assistem em corporação a uma Missa solene. Tanto o Celebrante que dá a paz como as pessoas que a recebem devem beijar o porta-paz. O primeiro do clero que recebeu a paz deste modo pode-a passar, por abraço, ao segundo do seu lado, e êste ao terceiro e assim por diante.” (Curso de liturgia romana, tomo II, Mosteiro de Singeverga, 1943, p. 246)

O início da utilização desta tipologia de objeto ter-se-á dado por volta do século XII ou XIII, ainda que não seja uma data consensual.

O início da utilização desta tipologia de objeto ter-se-á dado por volta do século XII ou XIII, ainda que não seja uma data consensual. O facto de ter sido utilizada em celebrações específicas poderá explicar a sua ausência da maior parte dos tesouros das igrejas portuguesas, ainda que outros fenómenos – até de natureza mais local – possam naturalmente estar envolvidos (no contexto espanhol, por exemplo, subsistem muito mais espécimes e de variadas épocas).

No que diz respeito à dimensão artística do porta-paz do Espinheiro, verifica-se, primeiramente, que há uma clara ligação da composição e elementos estruturais e decorativos deste objeto à linguagem arquitetónica. De facto, este porta-paz sugere imediatamente, na sua configuração, várias semelhanças com um retábulo ou com um portal, como têm sugerido diversos autores.

O elemento central de toda a composição é a figura de Nossa Senhora com o Menino – ou Nossa Senhora do Espinheiro –, inscrita numa edícula circular de sabor renascentista, sobrepujada por dois anjos esvoaçantes que a coroam e sentada sobre um crescente lunar envolvido num espinheiro. Esta representação remete para a milagrosa lenda do aparecimento da Virgem sobre um espinheiro em chamas, nos arredores de Évora, no local onde posteriormente se erigiria uma ermida (c. 1412), de seguida transformada no Mosteiro de Nossa Senhora do Espinheiro da Ordem de São Jerónimo (c. 1457). Todo o painel onde se encontra esta representação iconográfica é, por sua vez, enquadrado por uma moldura arquitetónica construída lateralmente por botaréus e feixes de pilares com cogulhos que se unem, no topo, num imponente coroamento em forma de baldaquino, rematado pela imagem em vulto do Salvator Mundi. Não será displicente encontrar similitudes em toda esta estrutura com a configuração do portal sul da igreja do Mosteiro dos Jerónimos de Belém (Joaquim Oliveira Caetano, «Arquitectura, Iconografia e Decoração na Obra Gótica e Manuelina», p. 195).

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PORTA-PAZ (DITO PORTA-PAZ DO ESPINHEIRO) Portugal, século XVI (c. 1520–1530) Prata – A 56 × L 29,3 cm – MNAA, inv. 93 Our Fotografia © DGPC/ADF, Luísa Oliveira

Outras representações hagiográficas de importante significado iconográfico e simbólico são, seguramente, as figuras escultóricas de São Jerónimo (à esquerda) e de Santo Agostinho (à direita), que ladeiam o painel central. Serão particularmente relevantes na medida em que o primeiro, vestido com trajes cardinalícios e acompanhado pelo leão (seus tradicionais atributos), é o padroeiro e fundador espiritual da ordem religiosa que se instalara em Évora e o segundo, representado enquanto bispo, o redator da Regra que os monges jerónimos assumiram como sua. Dois outros pares de pequenas esculturas surgem mais acima, ao nível da figura da Virgem, agrupando Moisés (com as tábuas da lei) e São Pedro (com uma chave), à esquerda, e São Paulo (com a espada) e o Rei David (com a harpa), à direita. Tal constitui-se presumivelmente como uma ligação entre o Antigo e o Novo Testamentos, nomeadamente com referências à Lei de Deus, à Antiga Aliança e à profética descendência de Cristo da linhagem do Rei David, e à Nova Aliança, aos apóstolos Pedro e Paulo enquanto pilares da Igreja e consubstanciadores de toda a sua missão eclesial e apostólica.

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IN CEREMONIALE EPISCOPORUM Roma, 1651 (pormenor).

Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, e a consequente transferência das alfaias em metais preciosos para a Casa da Moeda, à qual se seguiu, no caso deste porta-paz (e de outros objetos), a sua posterior incorporação nas coleções da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa (da qual o Museu descende), em 1867, deu-se início a uma outra fase da vida do porta-paz do Espinheiro: perdendo a sua condição sacra, iniciou o seu percurso enquanto objeto patrimonial e museológico. Desde aí, foi um objeto significativamente divulgado através de exposições (nesse mesmo ano de 1867 marcou presença na Exposição Universal de Paris) e das mais variadas formas de reprodução (gravuras publicadas em periódicos ilustrados, fotografias e galvanoplastias difundidas por catálogos e museus). De facto, não é por acaso que o porta-paz do Espinheiro foi considerado “uma das peças mais originaes da ourivesaria nacional e de lavor mais perfeito”, estatuto que ainda hoje inegavelmente preserva.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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