Os poetas nebulosos da China

Esta semana, a Brotéria sugere "Poética Não Oficial", um livro que aproxima o leitor ocidental de uma poesia chinesa afastada de cânones governativos.

Esta semana, a Brotéria sugere "Poética Não Oficial", um livro que aproxima o leitor ocidental de uma poesia chinesa afastada de cânones governativos.

A Editora Labirinto apresenta uma edição bilingue de poesia contemporânea chinesa cuidadosamente traduzida por Sara Costa – ela própria poetisa. Quando em 1942 Mao Zedong endereçou os artistas chineses no fórum de Literatura e Arte de Yan’an, frisou que o verdadeiro artista era aquele que alinhava com os intentos revolucionários e se dirigia ao povo; a fim de educar as massas e elogiar os feitos revolucionários.

Quando estamos a falar de poesia não oficial estamos, em grande medida, a fugir a estes parâmetros. As diversas mudanças sociais e culturais chinesas que ocorreram desde então forçaram a poesia nacional a tornar-se na sua caixa de ressonância, bem como o diagnóstico de um modo de consciência social. Nas palavras da tradutora: «a arte, enquanto alma de um país, tem o potencial de nos fornecer outro entendimento sobre um determinado povo» (p.6).

Neste sentido, a poesia não oficial percorre caminhos distintos dos da oficial e ortodoxa. Podemos intuir a persistência de aspetos ancestrais da cultura chinesa; como uma certa obstinação pela contemplação de elementos naturais cheios de carga simbólica – desde os cavalos de Hai Zi, até às múltiplas referências a montanhas de sons e tons misteriosos. Mas se considerarmos as narrativas do Movimento 4 de Maio – um movimento literário chinês do início do século XX, iniciado pelo escritor Lu Xun que tinha como objetivo cortar os laços com a tradição imperial e abrir a China à modernidade – rapidamente veremos a divergência com este grupo de poetas não oficiais. O Movimento 4 de Maio não elogiava os feitos revolucionários mas procurava educar as massas; daí o seu recurso a histórias breves que pudessem ser lidas por todos.

Já no caso dos poemas aqui selecionados, reconhecemos que, apesar de muitos questionarem os progressos da modernidade, nem sempre o expressam de forma clara, preferindo antes uma linguagem densamente simbólica. Daí que muitos dos autores aqui representados se tivessem associado ao movimento literário menglong, isto é, nebuloso e obscuro. Este estilo literário não se expressa de forma inteiramente impercetível, mas ocupa-se de uma procura daquilo que é menos óbvio e tangível. Talvez se revista de um certo carácter profético dentro de uma certa China urbana e marcadamente materialista.

Por tudo isto, quando Zedge Zhuo contempla um vaso e se questiona: «Que forças irrigam o botão da flor / tão separado das suas raízes, / mas que ainda fazem florescer o vaso?» (p.37) está a permitir que uma pergunta mais profunda possa emergir. Estará a pensar nas raízes pessoais, familiares ou culturais? Não sabemos, nem se deve calar o poeta com uma definição unívoca. Porém, a pergunta que surge do nebuloso oferece ao leitor atento uma ocasião para aquela hospitalidade que a tradição e a tradução poética inauguram no coração da história e das culturas. Poética Não Oficial não é apenas um relato poético do Oriente distante. Vertida para a língua portuguesa, e lida com hospitalidade, podemos recriar e encontrar nesta poética um grau de familiaridade com o distante de nós. Nas palavras da tradutora, descrevendo a sua atividade, também o leitor está convidado a «traduzir como quem traz um poema análogo à sua existência» (p.7).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


Brotéria Logo

Sugestão Cultural Brotéria

Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

Conheça melhor a Brotéria