Capítulo 4
Os nós e os laços familiares
As famílias trazem, potencialmente, consigo o melhor e o pior do mundo. Podem ser redutos que nos acolhem, amam e amparam, ou microcosmos peculiares, muitas vezes de grande violência, emocional e não só.
Antes de mais, é importante um apriorismo sobre os laços familiares: uma coisa é ser pai ou mãe; outra coisa é ser progenitor. Ser pai e mãe implica uma profundidade humana; ser progenitor não vai além do parentesco e do biológico. Parece uma distinção óbvia mas há muita complexidade nesta diferença.
O Papa Francisco fala e recorda muitas vezes a família, pela sua importância estrutural na sociedade. A meu ver, há que fazer uma distinção: entre família e clã. Neste último, os elementos diluem-se em nome de uma linhagem. São unidos em prol de qualquer coisa acima deles mas não cuidam uns dos outros. O indivíduo existe dentro dessa célula mas sozinho.
As famílias, pelo contrário, devem ajudar as pessoas a crescer por si mesmas, com sentimento de pertença, sim, mas, sobretudo, vivendo com aquilo que são. Só assim as pessoas crescem individualmente mas também com um sentido comunitário, de que são unos e parte de um todo maior, composto por todos nós, e onde, juntamente, somos chamados a ser e fazer parte.
É também com a ajuda das famílias que aprendemos a identificar e conquistar o nosso lugar no mundo. Não o lugar que a família nos destina, aquele que seguimos por destino ou tradição familiar, mas aquele que nos cabe por vocação, missão e paixão. Nós não podemos ser reduzidosao que fazemos, mas o que fazemos tem muito de nós.
Assistimos hoje a uma quebra dos laços familiares, por um lado, e uma abertura do conceito de família, por outro. Em sentido positivo, as famílias alargam-se porque encontram lugar para novos laços. As novas relações dos casais que se divorciam, os filhos que entretanto nascem e passam a ter irmãos que vieram antes, as famílias que, na melhor das hipóteses, se fundem e passam a ser uma só. Num sentido negativo, e durante os anos em que fui professor, pude assistir a uma desagregação dos laços entre pais e filhos, em muitos casos mantendo o lado funcional do amor, mas obliterando o gesto, o toque, o abraço, no fundo, a linguagem universal do afecto.
Portanto, sim, é importante a Igreja apoiar o indivíduo mas é igualmente importante trabalhar a família, para que possamos tomar consciência da responsabilidade que temos na relação uns com os outros. É na vida de todos os dias que isto se faz, na abertura da Igreja a todos, porque o quotidiano fala muito mais do que imaginamos. A vida faz-se muito mais dos pormenores do que dos grandes temas.
A educação das crianças
Ao educarmos crianças em modo funcional, quando lhes providenciamos apenas aquilo que o dinheiro pode pagar, estamos, entre tantas outras falhas, a prepará-las para repetir o mesmo modelo com os seus filhos. A transgeracionalidade, a informação que passa de geração em geração, o modo como amamos os nossos filhos, não os vai impactar só a eles, mas aos que ele gerarem depois deles. Se não os ensinamos a amar e a serem amados, que tipo família estamos a construir? A que tipo de pessoas estamos a dar forma? Eu respondo-vos: estamos a educar crianças para sobreviver e não para uma vida. Portanto, o nosso desafio é: como podemos dar o salto para a profundidade que a vida também nos oferece?
Como observador da realidade, das pessoas, da sociedade contemporânea, penso muitas vezes neste salto para a profundidade. Nos anos de professor no colégio das Caldinhas, tentei passar aos pais a ideia de que as projecções deles para os filhos são muito perigosas, por forma a ganharem consciência de que, enquanto pais, têm uma responsabilidade tremenda na formação do ser humano. Se eles estiverem bem, vão olhar para as suas crianças como crianças e não como adultos em miniatura. Porque se eles estiverem bem consigo mesmos, conseguirão colocar-se no lugar da criança e perceber que ela precisa, fundamentalmente, de duas coisas: amor e regras. Porque ser pai e ser mãe, mais do que ser progenitores, significa que se está a dar vida ao outro, encaminhando-o para o pleno de si. A palavra educar vem do latim ‘educare’, significa ajudar a crescer, a caminhar para a frente. É dar vida, não é empurrar para a frente, é dar autonomia, não é retirar possibilidade pela ausência de amor puro.
Enquanto adultos educadores temos uma função principal: ajudar o bebé ser bebé, a criança ser criança, o adolescente ser adolescente. Repito: nenhum deles é adulto em miniatura, e acrescento, nem uma extensão de cada pai, mãe ou educador, mas único, necessitando de quem os oriente no caminho do crescimento, da evolução pessoal. A orientação ou educação é um desafio em permanente actualização: implica viver o complexo jogo de limites amorosos e liberdades respeitadoras. O perigo situa-se nos dois pólos “podes-fazer-tudo-que-assim-aprendes” e “não-podes-fazer-nada-sem-que-seja-eu-a-controlar”. Para não estarmos em nenhum extremo destes, muitas vezes somos nós adultos que temos de permitir que o bebé, a criança, o adolescente que em nós não cresceu o faça. Sermos como crianças, como nos recorda Jesus no Evangelho, não é nos infantilizarmos. Ser como criança é permitirmo-nos ser o que somos, no reconhecimento dos limites e das liberdades entre luzes e sombras que anseiam por dissipar-se, e assim chorar choros contidos, brincar brincadeiras impedidas, amar amores plenos e autênticos. Ao sermos adultos como crianças tornamo-nos suportes dadores de vida
O livro Rezar a Vida será lançado no dia 27, às 18.30, na Fnac do Chiado, em Lisboa. Contará com a presença do autor e a apresentação de Henrique Raposo e Ana Rita Ramos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.