Origem e impacto da Covid-19 na nossa alimentação

Num mundo cada vez mais artificial e desligado da natureza, esquecemo-nos de que na origem desta pandemia está um dos atos mais essenciais da nossa vida: a escolha dos alimentos que ingerimos.

Num mundo cada vez mais artificial e desligado da natureza, esquecemo-nos de que na origem desta pandemia está um dos atos mais essenciais da nossa vida: a escolha dos alimentos que ingerimos.

As pandemias estão há muito no topo da lista das maiores ameaças às nossas sociedades. Um olhar para a história das civilizações revela que as pandemias não só são frequentes como muitas vezes causaram o declínio ou o progresso das sociedades por elas atingidas. De resto, num livro recentemente publicado por Jaime Nogueira Pinto relata algumas dessas pandemias e o seu impacto nas sociedades ocidentais.

Todavia, parece que estamos rapidamente a esquecer-nos do que causou esta pandemia. Todos sabemos que o agente causador da Covid-19 é um tipo de vírus chamado coronavírus, mas parece que esquecemos a origem zoonótica desta doença. As zoonoses são doenças de origem animal que passam para o homem. Exemplos deste tipo de doenças são a brucelose e a tuberculose. Tanto quanto sabemos, este tipo de vírus hospedava-se em morcegos ou pangolins e foi transmitido pelo contacto ou o consumo destes animais vendidos num mercado tradicional chinês.. Ora este tipo de mercados abundam na China, onde são procurados muitas vezes por consumidores de diferentes níveis de rendimentos. Embora na China a produção em viveiro de animais “selvagens” exista e seja um negócio bilionário (ver este artigo publicado no The Conversation), a verdade é que também há ainda um grande número de animais capturados na natureza. A captura, produção e comercialização destes animais são feitas sem grandes condições higiénicas.

O que motiva o consumo de animais selvagens? Um estudo recentemente realizado pela USAID sugere que o motivo deste consumo na China, mas também no Vietname e na Tailândia, não é a necessidade de proteínas ou o facto de estes produtos serem mais baratos. Pelo contrário, estes animai selvagens são procurados por uma questão de afirmação de estatuto económico ou porque os compradores creem que  têm benefícios para a saúde (para os interessados este artigo também aborda este tema). O que gostaria de salientar é que, tal como esta pandemia tem na sua origem o consumo alimentar, existe hoje cada vez mais consciência do impacto que o sistema de produção e consumo de alimentos têm não só na nossa saúde como também na do planeta.

O que gostaria de salientar é que, tal como esta pandemia tem na sua origem o consumo alimentar, existe hoje cada vez mais consciência do impacto que o sistema de produção e consumo de alimentos têm não só na nossa saúde como também na do planeta.

De facto, quem acompanha a evolução dos mercados alimentares a nível global nas últimas décadas observa várias contradições. Em primeiro lugar, é importante salientar como foi reduzida substancialmente a fome na generalidade dos países. No entanto, temos hoje uma significativa proporção da população com excesso de peso ou obesa, o que ameaça causar tanta mortalidade como a fome. Além disso, paradoxalmente, temos assistido a um aumento significativo da insegurança alimentar nos países desenvolvidos, como mostra a expansão dos Bancos Alimentares na principais cidades europeias e americanas. Em segundo, temos hoje uma enorme variedade de alimentos à nossa disposição, mas existe uma redução da diversidade genética nos animais e plantas que consumimos. Por exemplo, uma só variedade de banana (a Cavendish) representa 47% da produção total global e 99% do comércio mundial de banana. Recentemente uma doença causada por um fungo (o Tropical Race 4 (TR4)) que parece afetar particularmente a variedade Cavendish tem-se vindo a alastrar desde as Filipinas até à Malásia e teme-se que se chegar à India ou à América Central possa causar enormes prejuízos económicos, mas também uma aumento da insegurança alimentar. Em terceiro lugar, se temos, por um lado, realizado imensos progressos na salubridade dos alimentos – e, na generalidade dos países, os alimentos nunca terão sido tão saudáveis- , por outro, continuamos expostos a pandemias, zoonoses e infeções de origem alimentar como as salmoneloses.

Assim, um dos desafios pós-covid é compreender como podemos compatibilizar e resolver estes paradoxos do nosso sistema alimentar. A boa notícia é que existe hoje capacidade de produção para alimentar não só toda a população humana como ainda para alimentar, anualmente, mais dois mil milhões de pessoas. Os desenvolvimentos tecnológicos ao nível da agricultura de precisão, os sistemas de informação e a biotecnologia sugerem que estamos mais preparados do que nunca para resolver o problema da fome. Temos hoje uma panóplia de recursos e opções para enfrentar os desafios que temos. Mas subsiste ainda um enorme volume de perdas alimentares ao longo da cadeia alimentar porque os produtos não estão conformes com as normas de qualidade, mas também por razões logísticas e de falta de condições de armazenamento. Como é sabido, também há um significativo desperdício alimentar ao nível das famílias. Do ponto de vista socioeconómico, ainda se notam enormes diferenças no acesso aos alimentos dentro da mesma sociedade e entre diferente sociedades. Isso leva a que um pouco por todo o mundo subsistam, por vezes no mesmo bairro, famílias sem suficientes alimentos e outras com excesso e consequente obesidade.

Embora os especialistas venham há algum tempo a alertar para as dependências e vulnerabilidades do sistema agro-alimentar, esta pandemia revelou-as à generalidade da população e isso vai obrigar-nos a pensar como podemos mitigar os efeitos de pandemias futuras, bem como os associados às alterações climáticas e à necessidade de conciliar a sobrevivência das sociedades com a preservação dos ecossistemas terrestres de que dependemos. Para enfrentarmos com sucesso estes desafios, na minha opinião, devemos procurar conciliar o uso das tecnologias e a capacidade científica com uma maior solidariedade e empatia entre todos os que produzem e consomem alimentos.

Embora os especialistas venham há algum tempo a alertar para as dependências e vulnerabilidades do sistema agro-alimentar, esta pandemia revelou-as à generalidade da população e isso vai obrigar-nos a pensar como podemos mitigar os efeitos de pandemias futuras, bem como os associados às alterações climáticas e à necessidade de conciliar a sobrevivência das sociedades com a preservação dos ecossistemas terrestres de que dependemos.

A urbanização distanciou os produtores de alimentos dos seus consumidores e fracionou as sociedades, ou seja, nem os consumidores se preocupam muito com a origem ou o bem estar dos agricultores nem estes necessariamente pensam em quem vai consumir o que produzem. É como se habitássemos planetas diferentes e, no entanto, estamos absolutamente dependentes uns dos outros. Assim, vejo esta crise como um alerta e uma oportunidade para refletirmos sobre o tipo de sistema alimentar que temos e como o poderemos tornar mais justo, equitativo e com um menor impacto ambiental.

Que ações concretas podemos tomar para adequar a nossa vida aos recursos alimentares de que dispomos? Como podemos reduzir o desperdício de alimentos? Como podemos alcançar uma vida mais sustentável e em harmonia com todos os seres que connosco partilham o planeta? Há mudanças simples e ao nosso alcance imediato e outras mais difíceis e desafiantes. Entre as coisas simples está um melhor planeamento das nossas compras e do consumo de alimentos, de forma a evitar desperdícios. Podemos também procurar comprar diretamente aos produtores através das várias plataformas digitais que emergiram nos últimos meses. Enfim podíamos adotar dietas mais sustentáveis.

A FAO define as dietas sustentáveis e saudáveis como aquelas que, não só nos dão os nutrientes necessários a uma vida saudável, como promovem sistemas de produção de alimentos que preservam os recursos naturais e a biodiversidade. Estas dietas possibilitam ainda a sustentabilidade económica, cultural e social de todos os que estão envolvidos na produção alimentar hoje e no futuro. Assim, podemos informar-nos sobre quais os alimentos que são produzidos de forma mais sustentável e respeitando os direitos humanos. Por exemplo, há muito que vem sendo incentivada uma maior proporção de vegetais nas nossas dietas pois, além de serem bastante nutritivos, estes exigem menor uso de água ou conduzem a uma emissão de carbono durante o processo produtivo menor do que a generalidade dos produtos de origem animal. Mas podemos ir mais longe, aplicando as nossas poupanças em fundos de investimento responsável ou realizando micro empréstimos a agricultores e suas famílias em países em vias de desenvolvimento, de forma a melhorar a sua capacidade de autossuficiência.

A Laudato Si alerta ainda sobre o perigo de divinizarmos a tecnologia, salientando como é fútil a nossa confiança, quase cega, na capacidade de resolução de todos os problemas e desafios que enfrentamos.

A Encíclica Laudato Si aborda (embora de forma indireta) a questão da alimentação e chama a atenção para a forma como a expansão de terras de cultivo ameaça a biodiversidade, mas também as populações. Convida-nos a refletir sobre o que valorizamos e como as nossas opções de consumo podem causar mal, sem sequer nos darmos conta disso. Alerta ainda sobre o perigo de divinizarmos a tecnologia, salientando como é fútil a nossa confiança, quase cega, na capacidade de resolução de todos os problemas e desafios que enfrentamos. Enfim, sugere que nos tornemos mais conscientes e adotemos uma espiritualidade mais holística e ecológica, tomando consciência de que somos parte integrante do mundo e para nele sobrevivermos temos de o cuidar.

A mudança nunca é fácil, mas se há coisa que estes últimos meses nos mostraram é que somos capazes de o fazer com grande celeridade. Era bom que pudéssemos aceitar o desafio do Papa Francisco na Laudato Si, que pudéssemos refletir sobre a nossa condição humana e sobre o lugar que ocupamos neste mundo. Que tomássemos mais consciência dos sacrifícios que pessoas como nós fazem, e dos impactos que atingem tantas plantas e animais para que possamos ter o que desejamos e tantas vezes descartamos sem grande consideração.

Sim, este vírus causou imenso sofrimento e dor, mas se calhar também nos veio desafiar e ajudar a compreender a fragilidade da nossa existência. Se calhar veio ajudar-nos a apercebermo-nos da correria desenfreada e sem grande propósito em que as nossas vidas se tornaram. Veio obrigar-nos a olhar e a notar aqueles que nos são mais próximos e queridos, mas também aqueles que, no outro lado do mundo, trabalham (sabe Deus em que condições) para que possamos desfrutar de coisas tão elementares com um café ou uma banana. Enfim, era bom que, tal como o Papa Francisco nos desafia, este vírus nos ajudasse a estarmos mais atentos e conscientes das nossas responsabilidades perante a criação. Era bom que nos desafiasse a tornar-nos mais compassivos e conscientes das consequências das nossas decisões e opções na vida, não só dos nossos irmãos, mas também desta nossa casa comum que é a Terra.

De tal forma que, num mundo cada vez mais artificial e desligado da natureza, nos esquecemos que na origem desta pandemia está um dos atos mais essenciais da nossa vida: a escolha dos alimentos que ingerimos.

Esta pandemia abalou-nos e muitos de nós ainda estamos inseguros, sem saber como devemos viver o dia a dia enquanto ela não se resolve. A vida a que nos habituámos e com que contávamos parece ter desabado como um castelo de cartas. A forma como nos relacionamos alterou-se quase instantaneamente. De tal forma que, num mundo cada vez mais artificial e desligado da natureza, nos esquecemos que na origem desta pandemia está um dos atos mais essenciais da nossa vida: a escolha dos alimentos que ingerimos. Talvez fosse uma boa ideia aproveitarmos este tempo para avaliar o que de bom e de mau havia na vida pré-Covid. Ainda no rescaldo da celebração do Tempo de Criação, talvez fosse bom ter como propósito refletir individual e coletivamente sobre a vida desenfreada e consumista que vivemos, pensando nos outros e talvez até que ponto as nossas ambições são razoáveis e saudáveis. Podíamos procurar pensar em como queremos viver no mundo pós-Covid19. Como nos podemos alimentar física e espiritualmente? Que papel podemos (devemos?) ter na criação de uma sociedade mais integrada, saudável e harmoniosa?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.