O Pedro e a Inês no meio da ponte

O problema é que nem me parece certa a abordagem de quem quer impor aos nossos filhos uma determinada visão do mundo, nem me parece certa a abordagem de quem quer proteger os filhos de conhecerem outras visões do mundo.

O problema é que nem me parece certa a abordagem de quem quer impor aos nossos filhos uma determinada visão do mundo, nem me parece certa a abordagem de quem quer proteger os filhos de conhecerem outras visões do mundo.

O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.

Há uma ponte pedonal em Coimbra em que parece que, se uma pessoa vier num sentido e outra noutro, não se vão encontrar a meio, porque a ponte parece desencontrada. Mas depois, afinal, há uma pequena praça no meio da ponte e se ambas as pessoas se desviarem um pouco da sua rota inicial, encontram-se.

Lembrei-me desta ponte a propósito da discussão em torno da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, onde não parece haver pontes possíveis, desde logo porque não parece que as pessoas de ambas as margens se queiram sequer encontrar.

Como sempre acontece nestes debates extremados, a discussão vai-se degradando e empobrecendo, a ponto de quase já só se reduzir a um soundbyte, que tudo diz, mas nada explica. Se usas a expressão igualdade de género és de um clube, se queres ser do outro clube, usas a expressão ideologia de género. Simples, não é?

Acontece que, com a crescente polarização do discurso, os defensores de uma posição apenas querem ler e se alimentam de artigos de opinião de quem defende aquilo que eles defendem, não lhes interessando ler e reflectir sobre o que pensa quem está do outro lado da ponte. Se a este caldo de radicalismo somarmos a palavra “sexualidade”, ainda que a coberto da palavra “género”, então temos o caldo entornado.

No meio desta batalha, é difícil ser moderado. Quem acentua o papel da Escola é acusado de a querer usar para doutrinar as crianças e jovens. Quem acentua o papel das famílias é acusado de a querer usar para doutrinar os filhos com valores incompatíveis com uma cidadania plena.

No meio desta batalha, é difícil ser moderado. Quem acentua o papel da Escola é acusado de a querer usar para doutrinar as crianças e jovens. Quem acentua o papel das famílias é acusado de a querer usar para doutrinar os filhos com valores incompatíveis com uma cidadania plena. É difícil reconhecer que pode haver razão em ambos os lados da ponte. Reconhecer que nem todas as pessoas têm a mesma mundividência e que nem todas as pessoas veem o mundo pelos mesmos olhos.

O problema é que nem me parece certa a abordagem de quem quer impor aos nossos filhos uma determinada visão do mundo, nem me parece certa a abordagem de quem quer proteger os filhos de conhecerem outras visões do mundo.

Que a acentuação dos estereótipos relacionados com o género/sexo das crianças e jovens é redutora e cultiva uma predeterminação do que é correcto e incorrecto, ou do que é esperado e não esperado de cada género/sexo, podendo contribuir para a existência de discriminações e desigualdades, parece-me claro. Tal como me parece claro que a acentuação da ideia de que todas as questões de género/sexo se resumem a construções sociais é redutora, podendo contribuir para um relativismo sem qualquer referencial ou padrão biológico. Que as crianças e jovens não encontrem na Escola – na idade certa – a possibilidade de reflectirem sobre estes temas, também me parece, no entanto, empobrecedor de uma educação global.

Mas não me parece que qualquer dos problemas que têm sido invocados a propósito da disciplina em causa se resolva com o reconhecimento da objeção de consciência à disciplina, nem com a qualificação da disciplina como opcional. É que a Cidadania e Desenvolvimento não trata só de igualdade. E a igualdade não se resume à igualdade de género. Assim, se o problema é a idade dos alunos a quem são dados esses conteúdos, deve lutar-se para que os conteúdos sejam transmitidos na idade certa. Se o problema é o modo como os professores dão os conteúdos, deve lutar-se para ter melhores professores a dar esses conteúdos. Se o problema é o modo como os próprios conteúdos estão definidos nos documentos oficiais, então, sim, deve lutar-se para que esses conteúdos sejam alterados, em vez de querer que toda a disciplina seja abandonada.

Mas não me parece que qualquer dos problemas que têm sido invocados a propósito da disciplina em causa se resolva com o reconhecimento da objeção de consciência à disciplina, nem com a qualificação da disciplina como opcional. É que a Cidadania e Desenvolvimento não trata só de igualdade.

O que não me parece bem é começar a conversa por criticar uma pequena parte dos conteúdos da disciplina e acabar a concluir que tudo o que tem que ver com género/sexo é tema de opinião e, como tal, não é tema para a Escola, mas tema para a casa dos pais.

Mas desde quando é que os temas de opinião ficam à porta da escola? Acredito numa escola aberta às várias opiniões e que ajuda os alunos a reconhecer que existem outras opiniões, quando, muitas vezes, em casa vigora a opinião única. Ou será que não temos todos a humildade de reconhecer que em nossas casas, por vezes, somos também redutores no modo como educamos os nossos filhos, à nossa imagem e semelhança?

O que todos devemos querer é que a Escola ajude a abrir os horizontes dos nossos filhos. Que isso os forme no reconhecimento das diferenças, na tolerância para com as diferenças, no combate aos estereótipos e na promoção de uma visão pluridimensional da vida, é o que eu desejo.

É isto a cidadania. Pode vir-se de uma margem ou da outra da ponte, de uma família ou da outra, mas é também a Escola que ajuda os nossos filhos a encontrar a tal praça no centro da ponte, onde nos desviamos um pouco da nossa rota inicial, para nos encontrarmos com o outro.

Creio que os católicos têm um papel insubstituível na promoção da tolerância, na defesa do pluralismo e na construção de uma verdadeira cidadania avessa a estereótipos que fomentem desigualdades e não devem entregar essas bandeiras a quem as queira ocupar, como se estas não fossem bandeiras do catolicismo há mais de 2000 anos. E isso implica denunciar, de modo inequívoco, quaisquer tentativas de ocupar abusivamente o espaço da cidadania, seja nos temas de género/sexo, seja noutros temas, através de conteúdos educativos sectários, mono-dimensionais e dogmáticos.

Ora, é evidente que os chamados “guiões de educação género e cidadania”, disponibilizados pelo Ministério da Educação, são a antítese do que deveria ser um guião nesse domínio. Ao longo de centenas de páginas, não se encontra qualquer vontade de transmitir uma visão global, problematizante e equilibrada do tema. Bem pelo contrário. E isso é, desde logo, uma negação da própria cidadania.

É evidente que os chamados “guiões de educação género e cidadania”, disponibilizados pelo Ministério da Educação, são a antítese do que deveria ser um guião nesse domínio. Ao longo de centenas de páginas, não se encontra qualquer vontade de transmitir uma visão global, problematizante e equilibrada do tema. Bem pelo contrário. E isso é, desde logo, uma negação da própria cidadania.

Mas um radicalismo não se combate com outro radicalismo, nem um estereotipo se combate com outro. E continuar a dizer que os rapazes gostam de andar à luta e as raparigas são princesas, ou se não o forem, é porque são Maria-rapaz, também não me parece ser o melhor caminho para uma educação dirigida ao combate a todas as formas de desigualdade e de discriminação, que promova a inclusão de todos. Como também me parece que não é preciso negar que o Pedro é um rapaz e a Inês é uma rapariga, para se educar para a cidadania.

Recomendo a todos os pais que no próximo passeio a Coimbra atravessem a pé a ponte Pedro e Inês e procurem imaginar o papel da escola como o daquela praça central, onde todos se podem encontrar, independentemente da margem de onde partem e sem querer convencer ninguém de que há apenas uma margem. A cidadania é assim. Pelo menos para mim.

 

O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

 

Fotografia: site Basófias

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.