O Mundo como o conhecíamos mudou. A época de paz que conhecemos desde a queda do Muro de Berlim acabou. Voltámos a uma política de blocos, gastos militares e desconfiança mútua. E isto é particularmente impressivo para as novas gerações europeias, que cresceram numa época de paz.
Se há um mês nos dissessem que a Suíça ia deixar de ser neutral, que a Alemanha ia aumentar brutalmente o seu orçamento de defesa, que a Dinamarca ia querer fazer parte a política europeia de defesa e que íamos bloquear os activos de um banco central russo reduzindo a margem de manobra da sua política monetária e causando uma desvalorização sem precedentes do rublo, provavelmente ninguém acreditaria.
Mas foi o que sucedeu. À conta de Putin, sim, e da sua invasão. Mas à conta da heroica resistência dos ucranianos, que conseguiram ao longo destes dias comunicar directamente connosco, numa estratégia que ficará na História e que obrigou o Ocidente a reagir, confrontado com uma invasão nas suas fronteiras e uma agressão aos seus valores.
E enquanto aguardamos os próximos passos da China, e mesmo que a invasão termine e a paz negociada se alcance, começa a ser claro que estamos a viver um aumento da tensão entre dois lados: as autocracias e as democracias liberais.
Nenhuma democracia é perfeita, mas entre uma democracia e uma autocracia, não pode haver dúvidas. E numa tensão como esta, é evidente que vamos ter de nos empenhar na defesa global do modelo que proporcionou a maior paz e prosperidade da História: a democracia liberal, aquela onde cada pessoa é tão livre e tão igual quanto a outra.
Está hoje claro que Putin não invadiu a Ucrânia por estar incomodado com a NATO, assim como ninguém hoje acredita que o Ocidente é que provocou isto tudo, que estávamos melhor se estivéssemos orgulhosamente sós, fora da NATO e fora da União Europeia.
Só a liberdade permite a paz social porque só ela consegue conciliar duas pessoas que pensam, actuam e vivem de forma diferente ou até conflituante. Só a liberdade permite a prosperidade, porque só ela permite que o Homem se desenvolva e se realize. Foi por isso que o Ocidente prosperou e alcançou a paz.
E é por isso que esta guerra não só mudou a União Europeia, que não é a mesma de há duas semanas, como está a mobilizar os valores da liberdade e a rejeitar as pulsões autocráticas, pacifistas e isolacionistas que nos últimos 10/15 anos começaram a vingar no Ocidente.
As pessoas saíram à rua para dizer que querem a democracia liberal e que a querem protegida. E esta sensação de urgência é algo que as novas gerações nunca viveram: davam as liberdades e a democracia liberal como garantidas e até contemporizavam, alguns até gostavam, de pensadores que defendiam o fim da União Europeia ou a incapacidade das democracias liberais em comparação com os regimes mais musculados.
Muitos dos que à esquerda olhavam para a Rússia como baluarte contra o imperialismo americano, ficam hoje sem chão. E muitos do que à direita olhavam para Putin como inspiração na defesa dos valores cristãos, ficam hoje sem resposta.
Sim, é preciso dizê-lo: nos últimos anos, Putin foi também a inspiração dos populistas de direita, que sem hesitação o classificavam como o melhor líder, dizendo que dele vinha a força para a defesa da cristandade e da família tradicional.
Está hoje claro que Putin não invadiu a Ucrânia por estar incomodado com a NATO, assim como ninguém hoje acredita que o Ocidente é que provocou isto tudo, que estávamos melhor se estivéssemos orgulhosamente sós, fora da NATO e fora da União Europeia. E ninguém hoje acredita que o Ocidente e o cristianismo se salvam com autocracias nacionalistas e imperialistas como a russa.
Não há amor a Cristo sem liberdade. E não há defesa do cristianismo que não passe pelo reconhecimento da liberdade.
Como dizia São Paulo, se os nossos gestos não se fundam no amor, na nossa entrega voluntária a Deus, então os nossos gestos não são nada. Não há amor a Cristo sem liberdade. E não há defesa do cristianismo que não passe pelo reconhecimento da liberdade.
Se, como nos dizia o Papa João Paulo II na Redemptoris Missio, a Igreja propõe, mas nada impõe, como foi possível que se tivesse contemporizado ou aplaudido quem politicamente se inspirou em Putin e nele reconheceu um cavaleiro das cruzadas?
Na Deus Caritas Est, o Papa Bento XVI afirma com clareza que a doutrina social católica “não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta”.
Como se tem permitido então a utilização política de Deus e da palavra de Cristo para defender a coacção, a discriminação, o ódio e a exclusão ou a imposição da fé, chegando ao ponto de ver em Putin um exemplo?
A 12 de Março de 2000, na Santa Missa no Dia do Perdão, o Papa João Paulo II pediu desculpas a Deus por todos os cristãos que usaram da violência no serviço à suposta verdade. Devíamos recordar-nos mais vezes desse gesto.
É pois evidente que a invasão da Ucrânia representa uma profunda mudança nas relações políticas e económicas globais: a Europa reforçou os seus laços de cooperação com os Estados Unidos, a União Europeia agigantou-se na defesa de valores comuns, entre os quais o respeito pela democracia e pela liberdade, e as sociedades ocidentais deixaram claro que não querem prescindir da democracia liberal.
Tudo isso representa uma inversão da tendência polarizadora e populista dos últimos anos. A invasão da Ucrânia juntou-nos de novo no essencial: a defesa da liberdade. E talvez nos devesse juntar, aos crentes, no ensinamento do então Cardeal Joseph Ratzinger na Instrução Libertatis Conscientia da Congregação para a Doutrina da Fé: Deus quer ser adorado por homens livres.
Fotografia de Marjan Blan | @marjanblan – Unsplash I Benjamin Espresso Bar, Kiev, Ucrânia
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.