Chamava-se Domingos Tang e foi arcebispo de Cantão. Morreu em 1995. Era chinês nascido em Hong-Kong e tinha uma grande proximidade com Portugal por ter feito cá parte da sua formação e por ter entrado na Companhia de Jesus através da Província Portuguesa. Muitos jesuítas portugueses lembram-se bem dele.
O vírus que este homem transportava consigo fazia dele uma pessoa extremamente perigosa para a sociedade. Tinha o vírus de Cristo, o perigoso vírus da fé cristã. Quando Mao-Tse-Tung subiu ao poder decidiu erradicar da China este vírus isolando todos os que estavam contagiados. Aos estrangeiros expulsou-os do país e aos chineses meteu-os na prisão. Foi o que aconteceu a Domingos Tang.
D. Domingos Tang esteve preso 22 anos. Destes, mais de 17 anos foram passados na “solitária”, privado de contactos com o exterior. Espanta a brutalidade do regime mas espanta mais ainda o facto de este homem ter permanecido mentalmente saudável ao fim de tanto tempo. Como é que não deu em doido? Em 1981, quando foi libertado, não sabia que tinha existido o Concílio Vaticano II nem que, entretanto, tinham sido eleitos 3 novos Papas, mas a sua sanidade mental permanecia intacta.
D. Domingos Tang esteve preso 22 anos. Destes, mais de 17 anos foram passados na “solitária”, privado de contactos com o exterior. Espanta a brutalidade do regime mas espanta mais ainda o facto de este homem ter permanecido mentalmente saudável ao fim de tanto tempo.
Lembrei-me de D. Domingos Tang quando andei interiormente à procura de alguém que nos pudesse ensinar a viver santamente uma vida fechada e com tempo, a situação de quarentena em que muitos de nós agora vivemos devido à epidemia. Foi aí que me recordei deste jesuíta, de quem tantas vezes ouvi falar. Haverá melhor exemplo que o de alguém que esteve numa “solitária” 17 anos?…
As estratégias de D. Domingos na prisão podem dar-nos ideias acerca de como podemos viver bem o nosso tempo de quarentena.
1. A disciplina, os horários
Fechado na sua cela, D. Domingos tinha o seu tempo organizado por um horário cheio de rotinas que ele cumpria escrupulosamente todos os dias. Estas incluíam a limpeza da cela, os tempos de meditação, as refeições, um tempo de ginástica, o Exame de Consciência da manhã e da noite e outras devoções como o rosário e a comunhão espiritual. Como não tinha relógio nem calendário, orientava-se pelo sol para calcular as horas.
D. Domingos conseguiu assim transformar uma massa disforme e selvagem de tempo (as 24 horas de cada dia) numa sequência organizada de tarefas e rituais, cada uma com o seu objectivo e desafios próprios. Ou seja: humanizou o tempo domesticando-o, fazendo com que o tempo passasse a ser o “seu” tempo. Criou rotinas. Fez isto para a organização do dia e até mesmo do ano.
Já no livro do Génesis, no 1º capítulo, se descreve assim a obra da criação: Deus vai estabelecendo fronteiras (entre o dia e a noite, a água e a terra seca, etc). E, deste modo, cria um habitat possível para o ser humano, aí onde, de início, só havia um caos, uma massa “sem forma e vazia” (Gen 1,2).
Nestes tempos de quarentena é fácil cairmos no marasmo. Nos primeiros tempos, se calhar, ainda aproveitamos para arrumar a garagem, forrar umas gavetas, consertar o fio do candeeiro ou jogar às cartas com os miúdos. Mas depois podemos dar por nós sentados passivamente à frente da televisão, num consumo voraz de informações ou – às tantas – de qualquer coisa que os canais nos mostrem. O que há a fazer pode ser feito daqui a um bocado e vamos ficando cada vez mais moles, sem energia. Deitamo-nos tarde (por que não, se não precisamos de nos levantar cedo?). Acordamos cansados. Às tantas damos por nós irritados no suposto paraíso do tempo livre.
As rotinas são essenciais à vida humana. Na nossa vida pré-covid tínhamos muitas rotinas que nos eram impostas do exterior. Agora temos de ser nós a criá-las. Rotinas diárias e rotinas semanais.
As rotinas são essenciais à vida humana. Na nossa vida pré-covid tínhamos muitas rotinas que nos eram impostas do exterior. Agora temos de ser nós a criá-las. Rotinas diárias e rotinas semanais. Um horário pode ajudar, com tempos próprios para as higienes, as refeições, as orações, os trabalhos na casa, os momentos à frente do computador, etc. Pode parecer um pouco artificial impormo-nos horas quando “tanto faz” acordar agora como depois ou comer agora como depois mas a verdade é que as rotinas são essenciais à sanidade mental.
Também pode ser bom ritualizar a semana: o bolo que se faz no Domingo à tarde, o telefonema à tia às terças feiras ao fim da manhã, a limpeza do quarto às quintas-feiras, o filme das sextas à noite…
2. A vida espiritual, o tempo para Deus
Quando, ao fim de 22 anos, D. Domingos foi liberto (por “grande clemência do Governo Chinês, segundo lhe disseram), reconheceu que tinha sido a oração a dar-lhe força para vencer as enormes provações do seu cativeiro e “manter a alma serena”. O seu dia estava marcado por rotinas espirituais, desde que acordava:
“Cada manhã, ao levantar-me, rezava a oração do Apostolado da Oração, oferecendo o dia a Deus. Depois dizia o “Veni Creator” (…) A seguir fazia meia hora de meditação meditando nas obras de Jesus e nos Seus milagres (…) O meu maior gosto era meditar na Paixão de Jesus e também rezar algumas orações da Missa, em Latim, de que me lembrava.”
Todos os dias fazia a comunhão espiritual, rezava o rosário e cantava cânticos em voz baixa, como este cântico que um preso protestante lhe tinha ensinado: “Jesus eu vivo para Vós. Jesus eu morro para Vós. Jesus eu sou Vosso. Na vida e na morte eu sou para Jesus”.
Às sextas-feiras e aos sábados fazia a Via-Sacra. A oração não fazia só parte da sua rotina diária e semanal mas também da sua rotina anual. Seguia os tempos litúrgicos e, como bom jesuíta, fazia 8 dias de “Exercícios Espirituais” todos os anos.
Às sextas-feiras e aos sábados fazia a Via-Sacra. A oração não fazia só parte da sua rotina diária e semanal mas também da sua rotina anual. Seguia os tempos litúrgicos e, como bom jesuíta, fazia 8 dias de “Exercícios Espirituais” todos os anos.
D. Domingos não estava sozinho na sua cela. Parece que todos os dias almoçava com Jesus e jantava com Nossa Senhora! Como bom cristão treinado nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, falaria ainda, todos os dias, com Deus Pai e – muito provavelmente – com vários santos da “corte celestial”.
Frequentemente queixamo-nos da falta de tempo para rezar mas a vida agora – em tempos de quarentena – oferece-nos uma oportunidade de ouro. Podemos rezar o terço, ouvir o “Passo-a-Rezar”, ter um tempo de meditação sobre o Evangelho do dia, seguir a Missa pela internet ou pela televisão, pegar num bom livro para fazer um tempo de leitura espiritual, etc. A vida em casa também se pode prestar a pequenos momentos em que o pensamento se eleva a Deus ao longo do dia: a Oração da Manhã ao acordar, a bênção da mesa às refeições, o Angelus ao meio-dia, o Exame de Consciência antes de dormir, etc. Mas, claro, também neste ponto da oração é preciso ter muita disciplina. Ajuda muito ter um horário espiritual, não deixando a oração à inspiração do momento mas decidindo de antemão a que horas vamos rezar e onde e como o vamos fazer.
3. O sentido de missão, a sensibilidade aos outros
É interessante ver como, na sua reclusão, D. Domingos não estava fechado sobre si mesmo. Estava trancado numa cela mas tinha o coração aberto, voltado para fora de si. Ao fim de 22 anos continuava a rezar diariamente pelo Papa, pelos sacerdotes, pelas irmãs, pelos cristãos de todo o mundo, pelos seus familiares e amigos. E oferecia um terço diário pela sua diocese de Cantão (para além do rosário completo que já rezava todos os dias).
É interessante ver como, na sua reclusão, D. Domingos não estava fechado sobre si mesmo. Estava trancado numa cela mas tinha o coração aberto, voltado para fora de si.
Diz-se que D. Domingos, quando conseguia um pouco de pão e vinho (supostamente “um xarope para a tosse”), guardava-os secretamente no bolso e celebrava a Missa. Mas não guardava a Eucaristia só para si. Numa cela em que esteve e que tinha uma janela para o pátio, discretamente, da sua janela, dava a comunhão a outros presos. Dava o possível: uma migalha de pão consagrado.
E nós, será que o estarmos fechados por fora pode abrir-nos por dentro? Acho que a reclusão da nossa quarentena tanto nos pode tornar mais egocêntricos como mais sensíveis aos outros. Depende da nossa atitude.
Vemos óptimos exemplos acontecer à nossa volta. Muitas pessoas aproveitam para pegar no telefone e falar a quem mais precisa ou com quem já não falam há muito tempo.
Vemos óptimos exemplos acontecer à nossa volta. Muitas pessoas aproveitam para pegar no telefone e falar a quem mais precisa ou com quem já não falam há muito tempo. Outros dedicam-se a causas de serviço aos mais desfavorecidos partilhando a migalha que lhes é possível partilhar: dando uma contribuição económica, fazendo compras para idosos fechados em casa ou pondo uma música na sua varanda todas as noites às 22 horas de modo a conseguir que os vizinhos saiam às suas janelas, cantem em conjunto e tenham um momento de união. Há pessoas que, dentro de uma mesma família, têm aproveitado este tempo para refazer ou fortalecer os seus laços e mesmo para curar feridas passadas. Muitos outros sentem-se divididos entre um grande desejo de sair de casa para ajudar quem mais precisa e a consciência de não poderem sair para não porem em risco a vida dos que vivem consigo.
Lembrei-me de D. Domingos Tang, de quem já muitas vezes tinha ouvido falar, e reli o impressionante pequeno livro das suas memórias[1]. Creio que temos muito a aprender com ele quanto ao modo de viver em quarentena, concretamente nestes pontos da disciplina, da vida espiritual e do sentido de missão. Mas, ainda que D. Domingos não tivesse nada a ensinar-nos, o seu testemunho tem, pelo menos, a grande vantagem de ajudar a que não dramatizemos exageradamente a nossa situação de reclusão. Ao lado dele, o nosso isolamento é afinal quase ridículo: temos televisão e internet, podemos ir à varanda ou mesmo às compras, podemos pegar no telefone ou no Whatsapp para falarmos com quem quisermos. E, sobretudo, não se prevê que a nossa pena dure mais que alguns meses.
Nada de queixas, portanto. A vida é o que é. Vamos mas é tomar a sério as precauções, dar a mão a quem mais precisa e aprender a viver bem este tempo.
[1] “Os insondáveis caminhos de Deus – Memórias de D. Domingos Tang, Arcebispo de Cantão”, da Editora AO, facilmente encomendável online. Os excertos atrás citados foram extraídos deste livro.
Foto de destaque: Arquivo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus D. Domingos Tang com o Ir. David de Sá.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.