“Compreender já é princípio de cura”.
José Augusto Mourão
Na sequência da inauguração de uma estátua do Padre António Vieira em frente da Igreja de São Roque em Lisboa, em 2017, foram trazidas novamente a debate, da parte de um movimento adverso à ereção deste lugar de memória vieirino, redundando nas recentes manifestações de vandalismo, a questão da escravatura e até mesmo acusações de racismo contra este jesuíta, feitas de modo estranhamente anacrónico. Esta discussão foi retomada com a recente vandalização desta mesma estátua.
Temos de considerar as reações a Vieira e a este seu lugar de memória em dois grandes planos de crítica: 1) as críticas às opções estéticas e às escolhas iconográficas que estiveram na base da construção da estátua de Vieira em frente da Igreja de São Roque em Lisboa; 2) as acusações de racismo, esclavagismo e colonialismo à pessoa e ao pensamento de Vieira.
As opções estéticas e iconográficas
Quanto ao primeiro plano, cumpre-me lembrar que era visto com grande estranheza, por estudiosos e admiradores de Vieira, o facto de não haver em Lisboa uma estátua e/ou um conjunto monumental dedicado àquele que foi considerado por Fernando Pessoa como o “Imperador da Língua Portuguesa”. Esta lacuna acabou por ser colmatada com a construção da representação escultural que tem sido alvo de contestação. A escolha iconográfica e os motivos estéticos poderiam ter sido outros e mais consonantes as sensibilidades artísticas contemporâneas; e, acima de tudo, o perfil de Vieira representado poderia valorizar mais alguns aspetos da vida e obra pelos quais também se destacou no plano literário e da crítica social e política. A escolha deste projeto de estátua em detrimento de outras opções que estavam em equação na eleição feita, decorrente de um concurso público para o efeito, pode e deve ser objeto de discussão. As discussões críticas serenas e ponderadas são saudáveis e devem contribuir para o esclarecimento e aprofundamento das questões em causa.
As acusações a Vieira
Outro plano crítico é o do aproveitamento do desacordo sobre o perfil desta representação escultórica para fazer de Vieira um símbolo do racismo e da escravatura na história do nosso país, fazendo uma condenação sumária em efígie na praça pública, sem ter em conta o conhecimento completo da sua obra que chegou até nós e do contexto histórico, cultural e mental que era o seu no século XVII. Não podemos incluir tudo na mesma questão. Torna-se importante revisitar a obra toda de Vieira, em que se pode observar as linhas do pensamento de Vieira sobre a escravatura, a crítica social às condições laborais dos escravos e o seu entendimento crítico dos processos de legitimação da escravatura, ao mesmo tempo com radicalismo evangélico na defesa dos oprimidos pelos senhores da economia colonial e com realismo político em relação às práticas esclavagistas vigentes em todo o sistema colonial europeu e global.
Vieira deixou-nos nos sermões, na epistolografia e nos textos proféticos um pensamento fortemente crítico das desigualdades e dos sistemas de opressão, partindo do axioma cristão da igualdade de todos os seres humanos enquanto filhos de Deus. O património intelectual que nos legou é marcado por uma fortíssima crítica social, tendo por horizonte o ideal evangélico da construção do “homem novo” e da “sociedade nova”, mais fraterna e mais justa.
Entre os muitos alvos da sua crítica, podemos aqui lembrar a sua posição frente aos que alegavam a cor da pele para legitimar a escravatura. Vieira refutava claramente esse argumento, diríamos hoje de “supremacia branca”, advogando que a escravatura se fazia em razão da força e não se poderia legitimar pela consideração da natureza, ou seja, em nome da proveniência étnica ou da pertença rácica dos que eram escravizados.
Para rebater os que tomavam a cor como fator de superioridade, Vieira fez, numa das suas intervenções mais contundentes sobre esta problemática, uma apreciação muito elogiosa dos homens de cor preta, num dos sermões que pregou contra os excessos dos senhores da indústria açucareira no tratamento da população escrava, especialmente da proveniente do continente africano. Antes de mais, cumpre-nos fazer notar que a afirmação cultural e social do conceito de raça para caracterizar e hierarquizar os povos da Terra só viria a afirmar-se como chave hermenêutica no plano cultural e científico no contexto do iluminismo e com especial elaboração no século XIX. Portanto, é fora de contexto falar de racismo no tempo de Vieira na forma como se veio a conceptualizar mais tarde. Todavia, a diferenciação por referência à cor de pele já estava em curso.
Vieira refutava claramente esse argumento, diríamos hoje de “supremacia branca”, advogando que a escravatura se fazia em razão da força e não se poderia legitimar pela consideração da natureza, ou seja, em nome da proveniência étnica ou da pertença rácica dos que eram escravizados.
O discurso antirracista
Neste contexto, o Padre António Vieira não só afirmou, num dos seus sermões dedicados ao Rosário, que “cada um é da cor do seu coração” (VIEIRA, Obra Completa, Tomo II, Volume IX, 177), afrontando qualquer desqualificação antropológica por motivo da cor da pele, como chegou mesmo a exaltar, corajosamente, no Sermão XX do Rosário, a cor preta. Com base na simbologia das cores e nas qualidades associadas, Vieira explicava que a cor branca disgrega a luz, metáfora da verdade e do conhecimento, e a cor preta congrega e absorve melhor a mesma luz. Afirmou ainda, explorando o plano simbólico, que a cor preta une a vista tanto quanto a cor branca a dispersa e desune para afrontar a arrogância dos senhores brancos ao oprimir, com laivos de superioridade, os pretos escravos:
“O segundo, e segunda causa da grande distinção, que fazem entre si, e os Escravos, os que se chamam Senhores, é, como dizíamos, a cor preta. Mas se a cor preta pusera pleito à branca, é certo que não havia de ser tão fácil de averiguar a preferência entre as cores, como a que se vê entre os homens. Entre os homens dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão, ou natureza. Bem se vê, onde não tem lugar esta força, nem a cor é vencida dela. Quando os Portugueses apareceram a primeira vez na Etiópia, admirando os Etíopes neles a polícia Europeia, diziam: ‘Tudo o melhor deu Deus aos Europeus, e a nós só a cor preta’. Tanto estimam mais que a branca a sua cor. Por isso, assim como nós pintamos aos Anjos brancos, e aos Demónios, negros; assim eles por veneração aos Anjos pintam negros, e aos Demónios por injúria, e aborrecimento, brancos. Deixando, porém, os que podem parecer apaixonados, ninguém haverá que não reconheça, e venere na cor preta duas prerrogativas muito notáveis. A primeira, que ela encobre melhor os defeitos, os quais a branca manifesta, e faz mais feios; a segunda, que só ela não se deixa tingir de outra cor, admitindo a branca a variedade de todas; e bastavam só estas duas virtudes para a cor preta vencer, e ainda envergonhar a branca. Mas das cores só os olhos podem ser juízes. Vejamos o que eles julgam, ou experimentam. Os Filósofos buscando as propriedades radicais, com que se distinguem estas duas cores extremas, dizem que da cor preta é próprio unir a vista, e da branca disgregá-la, e desuni-la. Por isso a brancura da neve ofende, e cega os olhos. E não é isto mesmo o que com grande louvor dos Pretos, e não menor afronta dos Brancos, se acha em uns, e outros? Dos pretos é tão própria, e natural a união, que a todos os que têm a mesma cor, chamam Parentes; a todos os que servem na mesma casa, chamam Parceiros; e a todos os que se embarcaram no mesmo navio, chamam Malungos. E os Brancos? Não basta andarem meses juntos no mesmo ventre, como Jacó, e Esaú, para se não aborrecerem; nem basta serem filhos do mesmo pai, e da mesma mãe, como Caim e Abel, para se não matarem. Que muito logo, que sendo tão disgregativa a cor branca, não caibam na mesma Congregação os Brancos, com os Pretos?” (VIEIRA, Obra Completa, Tomo II, Volume IX, 169).
Vieira foi incompreendido, condenado pela Inquisição por ter defendido o regresso dos Judeus, entre outras ousadias, e até queimado em efígie pelos estudantes de Coimbra, incitados pelos sectores inquisitoriais nos inícios da década de 80 do século XVII.
Este e outros textos que Vieira nos legou são expressão da sua crítica social aos excessos do tratamento sub-humano dos donos dos escravos e da sua apreciação da comunidade de cor preta. O pensamento social de Vieira estava, pois, longe de ser enfermado de qualquer preconceito racista, antes procurava desconstruir criticamente os que já começavam a recorrer ao argumento da cor para constituir motivo de opressão do homem pelo homem. Para além do mais, não podemos esquecer que Vieira era, ele mesmo, o resultado brilhante de um processo de miscigenação, pois tinha na sua ascendência uma avó negra.
Vieira esteve, de facto, à frente do seu tempo em algumas das suas apreciações críticas e dos seus projetos de reforma social. Por isso, foi incompreendido, condenado pela Inquisição por ter defendido o regresso dos Judeus, entre outras ousadias, e até queimado em efígie pelos estudantes de Coimbra, incitados pelos sectores inquisitoriais nos inícios da década de 80 do século XVII. Parece que no momento presente, apesar do reconhecimento e do estudo que a sua obra tem merecido a nível internacional, Vieira continua a ser objeto de incompreensão e de acusação, querendo alguns voltar a queimá-lo em efígie por razões que resultam, como no passado, de ignorância e fundamentalismo. A leitura completa e atenta da sua obra, que agora está acessível a todos, pode ser a melhor forma de entender Vieira e a evolução do seu pensamento no seu sitz im leben e na sua complexidade e diversidade, e assim curar, pelo conhecimento crítico e aprofundado, os juízos primários e apressados que são sementes de todos os radicalismos, fundamentalismos e seus decorrentes vandalismos.
BIBLIOGRAFIA:
VIEIRA, Padre António, Obra Completa, 30 vols., Direção de José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013-2014.
VIEIRA, Padre António, “Cada Um É da Cor do Seu Coração”: Negros, Ameríndios e a Questão da Escravatura em Vieira, Organização e introdução de José Eduardo Franco, Pedro Calafate e Ricardo Ventura, Prefácio de Viriato Soromenho-Marques, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2018.
Fotografia: – Chabe01 – Espólio pessoal, CC BY 4.0,
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.