Os organizadores deste volume explicam muito bem (pp. 11–21) o sentido «uma lógica e uma orientação» (p. 18), desta recolha de sonhos sonhados por Maria Gabriela Llansol (1931–2008) que ela ia registando, a modo de diário, em cadernos, agendas, dactiloscritos, desde 1969 até 2006, e que agora vem à luz, extraída do seu espólio. O leitor poderá encontrar, ao longo do livro, variadíssimas anotações, acompanhadas, por vezes, de desenhos, de onde emergem acontecimentos reais entretecidos com outros surreais, belezas invulgares nas entrelinhas de cenas oníricas, factos, pulsões, ideias, frases, argumentos, análises, enredos… Tudo precioso, porque sinal de uma elaboração permanente que nem a noite nem o dia desvanecem.
Talvez pudéssemos falar da vida oculta da imaginação criadora. «Em Llansol, o sonho – e a necessidade da sua fixação escrita e tantas vezes da sua interpretação – parece ser acima de tudo um espaço de perda e de busca de si por parte de um sujeito que, pelo menos na versão escrita (e essa é a única a que temos acesso e aqui importa), a si mesmo permanentemente se põe em cena, oferecendo-se de corpo e alma aos seus desejos, anseios, medos, dúvidas» (p. 18). No posfácio (pp.207–212), António Vieira esclarece, entre outras ajudas proveitosas, um fruto a colher, nomeadamente para a compreensão literária desta escritora singular: «A palavra de Llansol sempre nos surpreende. Sonhamo-la, nós agora, a anotar abreviadamente estes resíduos sonhados, coisa para uso próprio, longe de qualquer público. Eis que, de súbito, nesse magma se precipitam elegantes cristais, lucilantes dizeres: “As vagas tornam-se rubras, crescem, recebendo no seu universo as cores das estrelas que se despenham” (28 de Fevereiro / 2000)» (pp.210- 211).
Tudo precioso, porque sinal de uma elaboração permanente que nem a noite nem o dia desvanecem.
De facto, muito se pode enriquecer, da compreensão atenta destes sonhos, «o carácter inacabado e inteiro, deliberadamente disperso e a fazer-se, dos livros conhecidos de Llansol» (p. 14). Gostaria de sublinhar, pela minha parte, a interrogação que aparece no dia 31 de Dezembro de 1996: «Se eu escrevo para alguém, para quem escrevo?» (p. 120), e a presença sempre reconfortante de um destinatário concreto, Augusto Joaquim (1943–2003) seu marido, confidente, intérprete: «Pergunto ao Augusto se ele sonhou, para que o seu sonho complete o meu, como tantas vezes sucede. Ele sonhou» (26 de Março de 1978, “Domingo de Páscoa”, p. 46). As numerosas ocorrências em que o nome de Augusto aparece, ganham importância, talvez ainda maior, no «espaço de perda e de busca» depois da sua morte, ocorrida em 11 de Novembro de 2003. Logo no dia 22, podemos ler: «Na época gloriosa em que este alguém morre, o silêncio é total e, no entanto, desfaz-se» (p. 185). E como se refaz, sublime, em Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004!
Assinalo também o sonho de 8 de Outubro de 2006, a dois dias do nascimento do Espaço Llansol, «a nossa Escola» (p.201) e «o gabinete de trabalho do Grande Textuador Desconhecido, que, estando ausente / tendo saído, só por este espaço se deu a conhecer. […] Mas aí a felicidade era feliz, e comunicou-me a esperança de um dia leve que levasse consigo o meu coração criativo à beleza discreta / incompleta daquele lugar» (15 de Novembro de 2006, p.202). É esta a última frase do livro. A nota que finaliza «o sonho de que acordo com uma explosão de realidade – às três e meia da manhã» (p. 187), assinalado a 20–21de Julho de 2004, reza assim: «Fico com a certeza de que o invisível é o real ao lado. Mas a ausência do Augusto no meu real é pungente» (p. 188). Poderíamos ligar «o invisível» deste texto com «o desconhecido», de que se fala no sonho de 18 de Outubro de 2000, quinta? «Quem é Deus? Encontro com os outros diálogos silenciosos. Mas eu digo que Deus é o desconhecido. Não se pode nomear, nem definir através de atributos» (p. 166). Para chegar ao universo de Maria Gabriela Llansol, é preciso consentir em entrar neste lugar: « ____ estou num espaço aberto, casa, entre pessoas que vivem lado a lado sem darem umas pelas outras, mas criando um clima de extraordinário acolhimento. O acolhimento da ‘boa indiferença’. Ou então como chamar-lhe?» (13 de Fevereiro de 2002, pp. 178–179). Talvez «causa amante», silencioso cuidado, «geografia de rebeldes», uma espécie de “teologia negativa”, à semelhança de alguns dos grandes místicos.
O Sonho é um Grande Escritor
Assírio e Alvim, 2020
14,94 €
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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