A longa metragem de Jean Jacques Annaud, é um thiller comovente, num misto de ficção e documentário, sobre o drama real vivido a 15 de abril de 2019, no incêndio da catedral de Notre-Dame de Paris. Acompanhamos a evolução dos acontecimentos quase minuto a minuto, desde os primeiros fumos até às imagens da espetacular derrocada do grande pináculo nos noticiários internacionais, a par de uma operação de salvamento, de intensidade igualmente crescente, que celebra o heroísmo dos bombeiros, homens e mulheres que arriscaram a vida para evitar o colapso dum ícone maior da capital francesa, e do património mundial.
A catedral é, em si, um motivo maior do interesse do filme que, sem ela poderia cair na categoria dos relatos de grandes desastres que abunda no cinema de grande público. Mas como no afundamento do Titanic (J. Cameron, 1997) ou no ataque às Twin Towers (World Trade Center, O. Stone, 2006) também passados ao grande écran, está em jogo um forte elemento simbólico, enraizado tanto na história como no afeto. O que as chamas consomem em Notre Dame é um símbolo cultural e religioso da memória coletiva.
O filme tem de vencer o desafio, captar a atenção do espetador que tem ainda fresca a memória do incêndio – ainda só passaram três anos. Tem de o prender a um desenrolar cronológico, fiel à realidade, que conduz a um desenlace, afinal já conhecido mesmo antes de entrar na sala. Consegue-o. Para isso o filme recorre às múltiplas pequenas histórias e peripécias que se tecem em redor do incêndio. Recorre ainda ao lado não escondido das coisas, o quotidiano da catedral, enquanto edifício de culto e monumento mais visitado do mundo, os interstícios duma arquitetura medieval e os bastidores duma grande operação dos bombeiros. A ficção injeta uma dose de imaginação para nos dar a ver o que não saiu nas imagens públicas. Há uma maestria do suspense cruzada com estes lugares invisíveis. O estado de degradação dum edifício tão singular, a inércia com que a realidade se impõe sobre o impensável – Notre-Dame não pode estar a arder! – os absurdos logísticos das primeiras abordagens, a dificuldade do Diretor Geral do monumento em chegar ao local quando só ele tem as chaves do cofre das relíquias, os bombeiros encurralados e subitamente em perigo de vida, nas estreitas escadas helicoidais e na “floresta” de asnarias da cobertura. O ritmo da narrativa e da ação, em ambiente asfixiante entre fumos e altas temperaturas, prende-nos ao lado escondido desta extraordinária batalha contra as chamas travada aos olhos do mundo.
A ficção injeta uma dose de imaginação para nos dar a ver o que não saiu nas imagens públicas. Há uma maestria do suspense cruzada com estes lugares invisíveis.
Um outro modo como o realizador cativa o espetador é através da espetacularidade das imagens, apoiadas na tecnologia Imax, convidando-nos a ver os filme nas condições de imersão em tamanho e definição, por ela possibilitadas, mas também, e principalmente, através das possibilidades do tema. Há quase uma matéria primordial da imagem e um propósito cinematográfico em tirar partido da arquitetura extraordinária da catedral, filmá-la de ângulos inéditos – ainda que em estúdio e em partes parecidas doutras catedrais: Saint-Étienne em Bourges, Notre-Dame de Amiens e de Saint Étienne em Sens. Imagens de grande beleza constroem-se também a partir do fogo, das atmosferas nebulosas, e do brilho das águas também fortemente presentes no combate às chamas. Boa fotografia e boas reconstituições de imagens de arquivo contrastam, contudo, em prejuízo do conjunto, com cenas em split screen, de algum modo desnecessárias. Uma problemática real do incêndio diz respeito ao chumbo da cobertura que, dadas as temperaturas acima de seiscentos graus, derreteu, o mesmo se volatilizou, o que o filme salienta abundantemente, tanto pelo perigo permanente para os bombeiros como pela estranha e inédita beleza do chumbo líquido a escorrer nas caleiras e gárgulas da catedral.
Podemos apontar dois momentos de clímax. O principal prende-se com a inversão do cansaço e desânimo ao surgir um plano arriscado de bombeiros corajosos, que se prestam a entrar na zona de maior risco para, em contra-relógio, tentar estancar o fogo, gesto decisivo para salvar o edifício. O segundo diz respeito à preocupação efetiva de recuperar a relíquia da coroa de espinhos de Cristo crucificado, a joia da catedral, certamente não a original, mas segundo as tradições medievais de real importância cultural e religiosa. Em contraponto à emoção, existem pitadas de humor e excessos de sentimento: a menina inconsciente do perigo que foge da mãe para acender uma vela, uma reorientação da significação simbólica do fogo, e o padre que exprime na sua fragilidade a consciência talvez mais profunda do sentido religioso da catedral.
Chamo a atenção do espetador para o papel das obras de arte da catedral – felizmente afinal pouco danificadas. Em especial, a própria imagem de Nossa Senhora, passível de ser destruída a todo o momento pela queda dos escombros, surge como símbolo e rosto da catedral no seu todo, e evoca a presença daquela que lhe dá o nome. Pena não se ter resistido ao pormenor kitsch, de lhe fazer escorrer uma lágrima.
Finalmente, enquanto filme feito para grandes audiências, constitui um elogio da coragem de homens e mulheres que na linha da frente, e em perigo de vida, demonstraram profissionalismo e coragem nas suas funções. De algum modo, a sobrevivência da Notre-Dame que a todos afetou, a todos solicitou também no seu salvamento, os bombeiros na primeira linha, mas também a mediação dos políticos, a oração dos cidadãos entre o Salve Regina e o Amazing Grace.
Estreia : 26 de april de 2022
Realizador: Jean-Jacques Annaud
Atores: Samuel Labarthe, Mickaël Chirinian, Jean-Paul Bordes, Jules Sadoughi
Género: Drama, 2022, 110min
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.