Num futuro que se espera relativamente, falar-se –á da historia do vírus, do confinamento, das perdas, das mudanças, de quem viu o mundo, das perspectivas dessa visão. Haverá a história exacta, os registos, as apostilas dos mesmos, um enorme livro acerca do mundo que fechou.
Sendo algo que afecta o mundo inteiro, é difícil pegar em qualquer coisa mais próxima de uma universalidade. Numa realidade em que uns lutam contra a ansiedade, outros contra a fome e a ameaça ou instalação efectiva de pobreza, outros ainda contra a violência entre portas e muitos mais com a sua consequência idiossincrática da falta de liberdade nos seus mais simples formatos, haverá uma miríade de narrativas. O mal-estar do mundo, que o levou a pensar, mas não pelos motivos patetas e “new-age” que pululam por aí, produzirá certamente um manancial de histórias, muitas delas feitas do nada, da paragem, dos dias da espera e da desconfiança e do sonho de um antídoto para bem mais que um vírus como este.
Se algumas mudanças se perpetuarem, mesmo após a descoberta de profilaxia ou terapêutica adequadas, acho que teremos uma imensa derrota. A mesma derrota que levou pessoas a trocarem liberdade por segurança inquisitiva ou a aceitar frases estúpidas e despóticas como “quem não deve não teme”.
Aceitar que algo deste cenário pode ser visto como um desenvolvimento de algo que nos deve ser “natural”, é não só aterrador como aviltante. A higienização de espontaneidades e bons tiques, como um aperto de mão sólido ou o abraço ao tipo do lado que berra connosco pelo tento do clube ou pela canção preferida do concerto, é algo, repito, de aterrador.
Aceitar que algo deste cenário pode ser visto como um desenvolvimento de algo que nos deve ser “natural”, é não só aterrador como aviltante. A higienização de espontaneidades e bons tiques, como um aperto de mão sólido ou o abraço ao tipo do lado que berra connosco pelo tento do clube ou pela canção preferida do concerto, é algo, repito, de aterrador. Não, não é natural. Nem desejável e muito menos deve ser uma espécie de nova etiqueta. Até onde pode ir a assepsia social? Até onde podemos andar numa orgia virtual apenas para defender uma distância perene do outro?
A falta que eu sinto dos outros, associada a uma paradoxal e ainda assim crescente alienação da ideia de turba ou grupo, é indiscutível. A palavra que quero ouvir e da qual aprender, o amigo que joga na equipa contrária e torna o jogo possível, o manuseador da garrafa que tilinta na minha e torna melhor o conteúdo de ambas. Todos. Tudo isto é necessário. O outro é necessário até para legitimar a solidão que ele provoca, ou não fosse a ansiedade sem (imediata) saciedade a metade de qualquer forma de amor que existe.
Recuso que a ideia de vida e liberdade possa estar associada a uma forma de isenção total de risco. Recuso que a ideia segundo a qual uma profilaxia comprovada possa “falhar”, me impeça de ter um gesto quando, afinal, se calhar até já posso.
A história que (acho que) queremos contar é sempre vista como a crónica do regresso. É a voz que carrega um pouco porque fala com respeito da memória de um tempo inóspito, mas que ajudou a celebrizar ainda mais o que vem a seguir.
Falta um bocado para o banquete final na aldeia gaulesa, mas lá estarei, cotovelo com cotovelo, afogado em javali. E que diabo, até ouvirei com gosto o Assurancentourix. Será bem melhor que este silêncio higiénico com que nos ameaçam.
O autor escreve sem Acordo Ortográfico.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.