No Céu não há Catedrais

Notre-Dame através do testemunho do P. Manuel Cardoso, jesuíta a viver em Paris, que durante anos acolheu turistas, guiando-os pela catedral. E também através do desenho de outro jesuíta: P. Nuno Branco.

Notre-Dame através do testemunho do P. Manuel Cardoso, jesuíta a viver em Paris, que durante anos acolheu turistas, guiando-os pela catedral. E também através do desenho de outro jesuíta: P. Nuno Branco.

Durante alguns anos, aos domingos à tarde, acolhi turistas e peregrinos na Catedral de Nossa Senhora de Paris. Uns e outros vinham com ideias e com imagens vistas na internet, em filmes, ou em livros: O meu papel era ajudá-los a abrirem os olhos e a verem a Catedral tal qual ela era.

Acolhi grupos numerosos e visitantes sozinhos, pessoas com imenso tempo e outros que estavam em Paris apenas para uma escala de algumas horas; As visitas eram, por isso, sempre diferentes e personalizadas, mas sempre fiz questão de parar num sítio aonde se podiam ver vitrais de quatro épocas diferentes. Quando em 1163 começou a construção, os vitrais instalados eram vitrais coloridos que ilustravam cenas bíblicas destinadas à instrução dos fiéis. Os reflexos desses vitrais com cores fortes, aliados às cores intensas com que as paredes estavam pintadas, criava assim um ambiente sensorialmente estimulante e vivo dentro da Igreja. Esse tipo de ambiente de oração e de celebração litúrgica – muito do agrado da comunidade cristã do século XII e XIII – não funcionava para os cristão que, em 1622, aí rezavam. Foi por isso que todos os vitrais do Rés-do-chão foram, nessa altura, substituídos por vidros brancos, que deixavam entrar a luz do sol, mas sem a enfeitar de cores fortes. Mais tarde, nas renovações que Viollet-le-Duc dirigiu no século XIX, os vidros brancos foram substituídos por vitrais cinzentos: vitrais capazes de criar uma atmosfera de penumbra mais propícia ao recolhimento pessoal e à interioridade que convinha à devoção dessa época. Finalmente, em 1960, a Catedral recebeu, na galeria do segundo andar, vitrais feitos por Le Chevalier que recuperaram as cores medievais, mas que substituíram as cenas bíblicas por figuras abstractas. Cada época, tomou assim diferentes opções estéticas. Ora, naquele sítio era possível ver vitrais de quatro épocas diferentes, quatro épocas históricas que rezavam de forma diferente, que celebravam a sua Fé de forma diferente e que adaptaram por isso mesmo a Catedral para que ela servisse o seu propósito como lugar de culto em cada uma dessas épocas.

Ainda no mesmo local, junto à oitava coluna da nave direita, era também possível testemunhar outra mudança importante. A Catedral mandada construir pelo bispo Maurice de Sully era mais estreita do que a Igreja que agora vemos pintada de fumo e sem tecto. De facto, mal a construção das torres acabou, começaram a destruir-se paredes e a reconstruí-las uns metros mais à frente alargando assim, primeiro as naves laterais e depois o deambulatório por trás do altar principal. Nessa mesma época, ao longo do século XIII, as janelas do terceiro andar foram alargadas e as paredes alteradas para aumentar a luminosidade interior. Se os vitrais foram mudando, também algumas paredes exteriores originais foram substituídas por outras em locais diferentes ou com diferentes configurações.

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Desenho do P. Nuno Branco, sj, outubro 2011

Uns metros mais à frente, uma segunda paragem obrigatória, era passar junto ao Altar-mor (privilégio reservado aos visitantes acompanhados pelos guias da equipa da Catedral) no sítio onde, segundo reza a lenda, Napoleão terá retirado a coroa que o Papa lhe ia colocar na cabeça para se coroar ele próprio Imperador. Não tenho a certeza de que um cónego medieval, um dos que diariamente ali rezava o Ofício Divino, pudesse ter reconhecido o local da coroação de Napoleão como o seu espaço de oração diária, dadas a escala das reformas que esse espaço sofreu em 1708. Duvido também que um dos cortesão do Imperador francês reconhecesse o Altar-mor onde o seu soberano foi coroado no dia 26 de agosto de 1944 – dia em que tentaram balear o General De Gaulle dentro de Notre-Dame. Isto porque as mudanças no Altar-Mor são de facto consideráveis: mais do que a cruz colocada em 1993, ou que o Altar principal colocado em 1989, todo o conjunto foi sendo adaptado ao longo dos séculos. As colunas pintadas de cores garridas foram um dia revestidas de madeiras esculpida, depois revestidas de gigantes placas de mármore e foram finalmente despidas para, sem cor nem decoração, revelarem a pedra de que são feitas.

Agora será a nossa vez de reconstruir esse templo, de darmos forma à nossa experiência de Fé, reconstruindo a Catedral. Mas não nos esqueçamos que um templo, por mais bonito e valioso que ele seja, é apenas um meio para nos ajudar a nos encontrarmos em comunidade uns com os outros e por isso com Deus. Afinal, apesar de, em Notre-Dame de Paris, tantos de nós termos experimentado o Céu, no Céu não há catedrais…

A história da Catedral pode ser descoberta noutros pontos do edifício, mas esta visita rápida chegava, na maior parte das vezes, para  levantar uma questão complicada. Se São Luís (1214-12-70), Santo Inácio de Loyola (1491-1556) e Paul Claudel (1858-1955) rezaram os três em Notre-Dame de Paris, cada um deles rezou em ambientes distintos, seja em termos de disposição, decoração ou de iluminação; como podemos então dizer que é a mesma Igreja? O que é que nos permite dizer que tendo mudado as paredes, os vitrais, as peças de arte e as alfaias litúrgicas, todos os que ali se dirigiram, pelas mais variadas motivações desde o século XII, foram todos eles à Catedral de Nossa Senhora de Paris?A única resposta que me parece razoável é que o elemento comum, quase ininterrupto, que lhe dá unidade é a celebração da mesma Fé pelas sucessivas comunidades cristãs. De formas diferentes, e em ambientes vários, mas a mesma Fé que reafirma que “Jesus é o Cristo”. Foi sempre isto que tentei que as pessoas que acolhi na Catedral vissem:  apesar das mudanças e adaptações históricas do edifício, a cada momento, essas mudanças pretenderam sempre falar de Deus aos homens e mulheres das respectivas épocas. A Catedral não prova que Deus existe, mas prova que os homens e mulheres de Paris foram procurando formas diferentes para os ajudar a entrar em comunhão com Ele. A Catedral que tantos de nós visitámos é o acumular dos traços que os cristãos de outros tempos foram deixando da sua forma de buscar e encontrar a Deus. Mais que o valor patrimonial, a herança mais valiosa que deles recebemos é o testemunho da sua Fé. E isso, fogo algum pode destruir.

Depois do incêndio, que parece ter destruído uma parte muito considerável da Catedral de Paris, parece-me importante lembrarmo-nos que a Catedral de Nossa Senhora de Paris não é um bibelot, mas um edifício habitado. É um edifício que foi sendo modificado pelas sucessivas comunidades cristãs que ali rezaram e que dele se apropriaram, sempre com o mesmo objectivo, viver a sua Fé em comunidade. Agora será a nossa vez de reconstruir esse templo, de darmos forma à nossa experiência de Fé, reconstruindo a Catedral. Mas não nos esqueçamos que um templo, por mais bonito e valioso que ele seja, é apenas um meio para nos ajudar a nos encontrarmos em comunidade uns com os outros e por isso com Deus. Afinal, apesar de, em Notre-Dame de Paris, tantos de nós termos experimentado o Céu, no Céu não há catedrais…

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Desenho do P. Nuno Branco, sj, outubro 2011

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.