O livro que Tiago Cavaco escreveu vem de uma tradição muito pouco portuguesa. Para já, a sua religião é quase exótica entre nós: pastor Calvinista, Tiago Cavaco deu agora à estampa um livro de Sermões sobre o Evangelho de S. Marcos (ou só Marcos, para nos mantermos fiéis à letra do livro).
Também isto é raro: a nossa literatura de Sermões estaciona praticamente no Barroco e usa o Evangelho mais como mote para uma glosa estilística do que como alimento espiritual. E nisto Tiago Cavaco é bastante original: o tom alterna entre uma combatividade de raciocínio muito rápido e uma catequese estilisticamente anacrónica e encantadora; entre a multiplicação de raciocínios apologéticos e a ternura simples de uma audiência pouco letrada; os textos são pedagógicos, às vezes quase académicos, pastorais, mas também pós-modernos em muitos sentidos.
É isto, aliás, que dá graça ao livro. Ricardo Araújo Pereira, na Introdução, compara os estilos de Tiago Cavaco e de Vieira. Diz que onde um engalana, o outro encrudesce; onde um cita a Vulgata, o outro cita Nick Cave. De facto, conhecido o gosto pelo Punk de Tiago Cavaco, este é um discurso tentador; no entanto, parece-nos que não é exactamente isto que se vê no livro. Aquilo que se encontra é o texto canónico de um pastor, radicalizado pela crueza do Evangelho que trata.
É isto, aliás, que dá graça ao livro. Ricardo Araújo Pereira, na Introdução, compara os estilos de Tiago Cavaco e de Vieira. Diz que onde um engalana, o outro encrudesce; onde um cita a Vulgata, o outro cita Nick Cave.
É certo que Tiago Cavaco puxa a brasa à sua sardinha: olha para o Evangelho de Marcos como um Evangelho demonstrativo, de alguém que está interessado em mostrar a grandeza de Jesus pelo seu lado mais básico. Daí o ritmo alucinante do Evangelho; mais do que uma hagiografia, o texto de Marcos parece uma colecção de feitos prodigiosos, que deslumbram uma série de Judeus a quem o próprio Cristo vai chamando. É, na tese de Tiago Cavaco, este o primado do texto: o Evangelho de Marcos aparece como aquele em que Jesus é mais claro nas suas escolhas; aquele em que a escolha é mais evidente, e por isso aquele que permite entrar na doutrina calvinista com mais à vontade.
Se este fosse um livro de combate, não para os crentes mas para os gentios, parecia-nos essencial explicar de que modo é que um Evangelho destes não mostra uma tradição desde sempre focada nas obras como um dos pontos de legitimação de Cristo; não sendo, resta-nos admirar o lado exegético. É claro, mas sempre interessante; não é propriamente erudito, mas permite perceber os problemas vitais mais importantes. E isso, para uma exegese, já não é coisa pouca.
Este artigo faz parte do Caderno Cultura da edição de Maio-Junho da Brotéria.
Tiago Cavaco
216 páginas, Quetzal Editores, 2018
(16,60 €)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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