Máquinas Como Eu

Esta semana a Brotéria sugere o livro mais recente de Ian McEwan. Um romance diferente do habitual, que se desenvolve a partir dos desafios específicos da Inteligência Artificial.

Esta semana a Brotéria sugere o livro mais recente de Ian McEwan. Um romance diferente do habitual, que se desenvolve a partir dos desafios específicos da Inteligência Artificial.

Ao pegar no novo livro de Ian McEwan – Machines Like Me (Máquinas Como Eu) – e examinar a capa, um leitor encontra o seu olhar retribuído por um par de olhos azuis pertencentes a um homem de tronco nu, com um cabelo preto perfeitamente penteado. Apesar de ser, indubitavelmente, um homem, há algo de desumano, artificial, no seu semblante. Da mesma forma, na contracapa, encontra-se uma mulher, também de olhos azuis, também despida, de costas – olhando na linha do ombro – e loira. O seu olhar incide no mundo, fora das páginas. No ano de 1982, 25 robôs foram criados: 12 homens e 13 mulheres. Todos foram batizados de Adam e Eve.

Esta é a premissa principal do 15.º romance do autor de Atonement (Expiação) e de Amsterdam (Amesterdão). Também é o primeiro indício que o ano de 1982, habitado pelo narrador Charlie Friend, é muito diferente do 1982 que a História registou nos seus anais. JFK e John Lennon ainda são vivos; os Beatles acabaram de lançar um álbum decepcionante; Jimmy Carter está no seu segundo mandato – tendo vencido Ronald Reagan. McEwan cria um novo passado, um cujo o protagonista não é um político como Winston Churchill ou um ativista como Gandhi. O herói do século XX é Alan Turing. O genial matemático – que no “nosso” século XX acaba por morrer  em 1954, fruto da castração química – consegue dedicar toda a sua vida à computação e à inteligência artificial. Os cálculos feitos por ele e pelas suas equipas, tanto americanas como britânicas, permitiram avanços inigualáveis: carros autónomos, robots que recolhem o lixo e limpam a rua e, claro, os primeiros “robôs humanos”: ‘the first plausible intelligence and looks, believable motion and shifts of expression’ – com uma inteligência e aparência plausível, movimentos e expressões credíveis – (p.2; tradução minha).

Charlie vive em Londres num pequeno apartamento numa zona “nem má, nem boa”, do outro lado do Tamisa. O seu trabalho consiste em comprar e vender produtos nos mercados online. Não sendo particularmente inteligente, consegue sobreviver. A sua paixão por tecnologia compele-o a comprar um Adam, utilizando toda a fortuna que a sua mãe lhe deixou. Com a ajuda da sua vizinha de cima, Miranda, carregam ‘the ultimate plaything’ – o brinquedo derradeiro (p.4) que, como qualquer dispositivo electrónico novo, precisa de carregar a bateria antes de conseguir ser utilizado. Na cozinha do narrador, três figuras estão sentadas. Os dois humanos com um olhar expectante para o não-humano, já com os olhos abertos, vidrados no nada. É aqui que o livro descobre o seu início. Estas três personagens, a sua relação, o seu passado, o seu presente e o seu futuro vão prender o leitor a estas páginas e McEwan faz um trabalho brilhante a equilibrar o foco entre cada personagem, o foco político que os rodeia e, o que é particularmente magistral, a explicação de toda a tecnologia que suporta os novos “humanos”.

Máquinas como Eu, tem uma característica que cada vez é mais rara na ficção moderna: o valor literário encontra-se nas periferias e não no centro narrativo.

Assim, o leitor é “forçado” a adoptar a visão, a mente e a palavra de Charlie, que é, na sua essência, um cobarde. Apesar de sentir que a sua vocação é algo relacionado com a tecnologia quase chorando quando monta o seu primeiro rádio -, desiste do curso de Física, interessa-se por arte ao ler obras de Fitzgerald, Tolstoy e Orwell, mas entende que o estudo da literatura é demasiado intimidante e intuitivo, e acabar por estudar antropologia. Emocionalmente, Charlie é perdidamente apaixonado por Miranda, mas apenas o realiza após a compra de Adam, num ‘absurd leap of understanding into what one already knows‘ – absurdo salto de entendimento, aterrando em algo que já sabia, no que vai ser das poucas constantes na obra. Apesar de muitas vezes, nem ele se lembrar, este amor,  que acabará por ser correspondido, cresce, e o medo de dizer a Miranda algo que ela não gostaria de ouvir e de a enfrentar dissipa-se ao longo do texto. Os medos, o conforto e a insegurança fazem todos parte da vida de Charlie, mas ao viver, aparentemente, pela primeira vez emoções fortes, dilemas morais,  dúvidas e, principalmente, não o fazer absolutamente sozinho, torna-o numa personagem fácil de gostar, sendo que a irritação e quase asco – materializado quando investe em ações de tudo o que poderia ser patriótico e festivo (bandeiras, champanhe,etc.) na véspera do   início da “Guerra das  Malvinas, quando os ingleses são dizimados, Charlie foca-se nas suas perdas – estes desaparecem e o leitor percebe-se que ele está a tentar fazer o melhor que pode, mas sempre com resultados que ficam aquém das esperanças, como acontece muitas vezes fora do mundo ficcional.

A segunda perna deste trio disfuncional é Miranda. Natural de Salisbury, estudante de História  que nunca acaba de escrever um ensaio sobre o impacto das tarifas (1815) sobre os  cereais estrangeiros numa única rua de uma vila num pequeno concelho inglês – Miranda também evolui ao longo da narrativa, sendo estas transformações naturais o grande trunfo de McEwan neste livro. De uma personalidade fria, distante, envolvida no seu próprio mundo – ‘and she lost herself once more in a maze of private pleasure’; e perdeu-se, de novo, no seu labirinto de prazer (p.81) -, Miranda torna-se cada vez mais honesta, pronta a responder por si e pelas suas ações, mas também mais carinhosa e atenta. Enquanto a evolução de Charlie é contínua e mais dinâmica, a evolução de Miranda é despoletada por dois momentos em concreto. A discussão entre o casal e o momento de revelação à frente de Charlie e Adam. Nas partes finais, nas quais McEwan se vai desconcentrar das personagens e das suas vidas, para assumir um olhar mais amplo, virado para o contexto social e político que as rodeia, Miranda é a impulsionadora da narrativa, desafiando Charlie a partilhar a maior responsabilidade das suas vidas.

Finalmente, Adam completa o trio central desta obra. Tanto por críticos ingleses como portugueses, o robot foi considerado como a personagem mais interessante. Não sendo tão impactante como H.A.L.l de 2001: A Space Odissey (1968) mas mais profundo que Roy Batty de Blade Runner (1982), Adam é uma personagem que obriga, sendo essa a sua função, a prestar atenção àquilo que é intrinsecamente humano e aquilo que é fruto da experiência e da vivência de cada um. Caindo, por vezes, em alguns clichés típicos da Inteligência Artificial – como o encontro com Simon, em que Adam ouvindo uma pergunta trivial, responde com um dilema metafísico sobre a natureza do ser – muitas vezes tem um comportamento inesperado: apaixonar-se por Miranda e, consequentemente, dedicar-lhe haikus, a sua consciência – ‘a self, created out of mathematics, engineering (…) out of nowhere(…)Sometimes it seems entirely pointless’; um Eu, criado pela matemática, pela engenharia(…) do nada (…) Por vezes parece completamente em vão (p.234) –  e a sua bússola moral. De facto, esta é a sua característica mais interessante. De entre todas as calamidades que poderiam acontecer aos 25 Adams e Eves, aquela que os persegue, atormenta, levando-os a “suicidarem-se” e a tornarem-se “vegetais” é a grande lição (como de um livro infantil se tratasse) do livro. Adam nunca revela os mesmos “sintomas” que os seus irmãos e irmãs apresentaram, mas não deixa de lidar com os mesmos factos e situações. Esta, penso, é a grande tese de Ian McEwan: para que é que “servem” os romances? Para que “serve” a literatura?

O contexto político e o contexto tecnológico vão surgindo, como crianças num jogo das escondidas. Sempre que é necessário explicar alguma funcionalidade dos “novos-humanos” ou mostrar como este presente não é o “verdadeiro” passado, o autor faz um trabalho brilhante. Trata o primeiro caso com uma grande naturalidade, entrando em detalhes técnicos, que estão para lá de qualquer pessoa que não seja um entendido, mas encerrando o assunto com uma metáfora, um problema que ilustra e resolve toda a confusão: como a problemática do mercador-viajante. Todas as pequenas mudanças “históricas” que McEwan “cria” não têm um grande impacto direto na vida, mas conseguem definir o ambiente vivido em Londres (fazendo algumas, mas muito concretas, referências ao Brexit). Entre manifestações e comícios, Londres vai ser o palco de desilusões e de gritos, simbolizando o interior da casa e de cada personagem.

Por fim, não sendo uma obra-prima, Máquinas como Eu, tem uma característica que cada vez é mais rara na ficção moderna: o valor literário encontra-se nas periferias e não no centro narrativo. O episódio com o gerente do hotel em Roma, o destino de Tony Benn, a conversa cómica entre Maxfield e Charlie, a conversa com Peter Gorringe, e a profecia de Adam, são pequenos exemplos de como McEwan despeja o seu talento nos pormenores do mundo que cria. Um mundo que é completo, aberto e dinâmico, originando uma leitura entusiasmante, frustrante (por vezes) e séria.

Máquinas Como Eu
304 págs., Gradiva, 2019
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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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