Legislativas: Guerra dos Tronos em versão S. Bento

Partindo da leitura que Pablo Iglesias, líder do Podemos, fez da Guerra dos Tronos, o P. Manuel Cardoso, sj analisa a situação portuguesa com vista às próximas legislativas.

Partindo da leitura que Pablo Iglesias, líder do Podemos, fez da Guerra dos Tronos, o P. Manuel Cardoso, sj analisa a situação portuguesa com vista às próximas legislativas.

Pablo Iglesias, o carísmático líder do partido de esquerda radical Podemos, coordenou a edição de um livro de reflexão política a propósito da série televisiva Guerra dos Tronos (Ganar o Morir. Lecciones Políticas en Juego de Tronos, Madrid, Ediciones Akal, 2014). No prefácio desse volume, Iglesias compara dois modelos diferentes de intervenção política bem intencionada, ilustrando cada um com uma personagem da série: Eddard (Ned) Stark e Daenerys Targaryen.

Ned é descrito como um político justo, moralmente inatacável, cujas ações têm como consequência… piorar a situação dos cidadãos dos Sete Reinos de Westeros. Stark está tão preocupado em ser bom que não consegue transformar o mundo num sítio melhor. Receando tomar o poder e recusando mesmo o poder que lhe é proposto, Ned acaba por deixar o governo de Westeros aos injustos e aos conspiradores – em suma, aos que não se preocupam com regras morais e que abusam do poder. Ora esses personagens imorais não só lhe cortam a cabeça como acabam por explorar as populações que a sua derrota deixou indefesas. Stark quer tanto fazer as coisas bem, que a sua intervenção política cria uma situação pior para todos aqueles que desejam algo de bom e de justo para Westeros. Um tal comportamento político, defende Iglesias, seria bom num mundo bom. Mas, num mundo corrompido, a honra e a justiça não chegam: a legitimidade política necessária à mudança precisa de ser acompanhada da conquista de poder real.

Já Daenerys – com quem Iglesias identifica abertamente o seu Podemos– é apresentada como alguém que percebe a necessidade de ter poder para conseguir, de facto, quebrar as cadeias da injustiça, libertar os escravos e socorrer as vítimas. Iglesias vê nela uma líder que não receia utilizar os instrumentos que conseguirão realmente obter resultados políticos e mudar a situação das populações mais vulneráveis – neste caso, as armas que só ela possui (três dragões capazes de destruir qualquer defesa militar humana) e o seu exército altamente profissional. Daenerys percebe que é preciso que ela se aproprie do poder dos injustos. Ela compreende que nunca se acaba realmente com o poder e que o único caminho para melhorar a vida da comunidade política é apropriar-se do poder dos injustos que, destituídos de poder real, perdem a capacidade de impedir a mudança no sentido do bem comum. Iglesias insiste neste ponto, tanto a propósito da Guerra dos Tronos quanto das nossas guerras de tronos político-partidárias europeias: a legitimidade política e moral não interessam grande coisa (não mudam nada) se os justos não tomarem o poder. Só essa tomada do poder abrirá a possibilidade de mudanças social reais.

O que Iglesias talvez não tenha antecipado foi que, nas quatro temporadas de Guerra do Tronos que se seguiram à publicação de “Ganar o Morir”, os espectadores fossem descobrindo algumas mudanças no perfil político de Daenerys que, à medida que vai acumulando vitórias e aumentando o seu poder, se transforma numa líder tão violenta, odiosa e injusta para com o seu povo como o foram aqueles a quem ela prometera tirar o poder.

O que Iglesias talvez não tenha antecipado foi que, nas quatro temporadas de Guerra do Tronos que se seguiram à publicação de “Ganar o Morir”, os espectadores fossem descobrindo algumas mudanças no perfil político de Daenerys que, à medida que vai acumulando vitórias e aumentando o seu poder, se transforma numa líder tão violenta, odiosa e injusta para com o seu povo como o foram aqueles a quem ela prometera tirar o poder. À medida que a história avança, Daenarys converte-se numa líder política tirânica e injusta.

O desfecho da Guera dos Tronos é de certa forma irónico porque, na base ideológica do partido de Iglesias, estão dois teóricos políticos, Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, que defendem a identificação entre legitimidade política e poder. Tanto Laclau como Mouffe partilham ideias de esquerda, mas nada no “populismo de esquerda” que eles advogam exige um conteúdo ideológico de esquerda (nem de direita). A noção agonística da política e a desvalorização da busca de consensos que os orienta reduz a política à busca do poder por si mesmo. Se o populismo de esquerda é de esquerda, é-o porque os seus intérpretes assim o desejam. Aliás, a prova disso mesmo é que Laclau, e sobretudo Mouffe, se inspiram em Carl Schmitt – o controverso constitucionalista alemão próximo do regime Nazi –, um autor que dificilmente poderia ser considerado de esquerda. Tendo presentes as obras de Laclau e de Mouffe, a pergunta que importaria fazer a Pablo Iglesias é se ele identifica o Podemos exclusivamente com a Daenerys do início da Guerra dos Tronos, ou se ele também admira a utilização posterior do poder político conferido pelo Trono de Ferro para salvar os povos de si próprios e dar-lhes o que eles precisam, mesmo contra a sua vontade. (Curiosamente Iglesias comentou, dia 20 de maio de 2019, na sua conta de Twitter, o final da Guerra dos Tronos sem se referir à Daenerys que tanto admirava em 2014.)

Porém, e independentemente da questão se Iglesias manteria a identificação entre o Podemos e Daenerys, depois de conhecido o final da história, a leitura do seu texto inspira-nos dois critérios de ação a considerar no próximo dia 6 de outubro, dia de eleições legislativas.

Em primeiro lugar, não parece sensato dar o poder a personagens como Ned, figuras que parecem moralmente inatacáveis, mas que se revelam incapazes de assumir os custos que qualquer mudança acarreta. Políticos incapazes de transformar o mundo não servem de facto o bem comum e não merecem por isso mesmo que lhes confiemos o nosso poder sob a forma de voto. Mas eleitores ao estilo do pai Stark também são um perigo. Eleitores que não votam, eleitores que não se informam, eleitores que desertam da política (deixando-a para os injustos e para os conspiradores) são também eles um risco para as democracias liberais. A figura de Ned Stark, como Iglesias a descreve, lembra-nos que ao recusarmos utilizar o poder que temos como cidadãos, o poder de escolher representantes através do voto, estamos a abandonar a gestão da vida social, entregando-a a quem talvez não quiséssemos que a tivesse. Resumindo, é tão moralmente responsável pelo futuro o cidadão que escolhe votando quanto o eleitor que foge da escolha abstendo-se. Um primeiro critério para agir dia 6 de outubro pode, assim, ser resumido no imperativo moral – e tão cristão! – de participar nas eleições, informando-se bem e indo, de facto, votar.

Talvez a melhor, e porventura a única forma de garantirmos a nossa liberdade de cidadãos e de nos protegermos da possibilidade de sermos governados discricionariamente, seja não pactuar com este movimento de absorção de todas as competências sociais pelo Estado central. Ao invés, cabe-nos usar o nosso poder para reforçar as competências confiadas tanto à sociedade civil quanto aos municípios, às regiões autónomas, às áreas metropolitanas e às comunidades intermunicipais.

Em segundo lugar, o itinerário político de Daenerys relembra-nos que entregar todo o poder a um só líder, ou a uma só instituição, por melhor que ele ou ela pareçam, é muito arriscado. As Crónicas de Gelo e Fogo, a colecção de livros na qual se baseia a série, ao mostrar como o povo de Westeros foi massacrado pela sua nova Rainha quando a Daenerys libertadora de escravos tomou as rédeas do poder, sugere assim um segundo critério de escolha política muito terra-a-terra: a concentração do poder num só líder ou instituição – como o fizeram os habitantes de Westeros que seguiram Daenerys – não é uma decisão nada prudente. Concentrar toda a força numa só entidade é arriscar encontrarmo-nos, num futuro mais ou menos próximo, reféns de um soberano iníquo que não temos forma de parar. Aliás quantos ditadores do século XX não foram legalmente eleitos?

Ora, em Portugal, neste momento da nossa história política, o Estado central está progressivamente a concentrar mais e mais poderes em si mesmo. Muitas funções sociais que até há pouco tempo eram geridas pela sociedade civil portuguesa, ou por outros níveis da administração pública, têm sido açambarcadas pelo Estado central. Essa concentração tem sido justificada, ora por imperativos de gestão económica, ora por imperativos ideológicos de reforço da posição do Estado (evidentemente, tendo em vista a sua capacitação para poder fazer frente a injustiças), mas uma tal concentração de poder não é sã, não é prudente, não é justa. Que um Governo central da República Portuguesa goze de demasiado poder é meio caminho andado para que, em S. Bento, eventuais Daenerys libertadoras de escravos sintam a tentação de se deixarem metamorfosear em governantes autoritárias. Criar condições políticas para que os nossos governantes experimentem esta tentação é preocupante e deve ser evitado, para o bem de todos. A história política do século XX português devia servir-nos de antídoto para o perigo do messianismo político, da concentração de todas as expectativas num só líder providencial, mas parece que a vacina ainda não terá surtido efeito…

Talvez a melhor, e porventura a única forma de garantirmos a nossa liberdade de cidadãos e de nos protegermos da possibilidade de sermos governados discricionariamente, seja não pactuar com este movimento de absorção de todas as competências sociais pelo Estado central. Ao invés, cabe-nos usar o nosso poder para reforçar as competências confiadas tanto à sociedade civil quanto aos municípios, às regiões autónomas, às áreas metropolitanas e às comunidades intermunicipais.

Esta segunda lição – não concentrar demasiado poder em trono algum, nem mesmo no Estado central – não foi uma lição que Iglesias reteve da sua análise da Guerra dos Tronos. Porém, depois de ver a totalidade da saga de Daenerys, este parece ser um critério incontornável na escolha dos nossos representantes políticos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.