João Allen – Colecionar o mundo

A sugestão Brotéria desta semana é que visitemos a exposição "João Allen - Colecionar o mundo", no Museu Nacional Soares dos Reis no Porto. João Allen viveu no Porto, no século XIX e foi responsável pelo primeiro museu privado de Portugal.

A sugestão Brotéria desta semana é que visitemos a exposição "João Allen - Colecionar o mundo", no Museu Nacional Soares dos Reis no Porto. João Allen viveu no Porto, no século XIX e foi responsável pelo primeiro museu privado de Portugal.

Criador do primeiro museu privado em Portugal

Está em exibição no Museu Nacional de Soares dos Reis, até ao fim de setembro, uma exposição dedicada a João Allen, por ocasião dos 170 anos do seu desaparecimento.

Só o facto de ser o Museu Nacional de Soares dos Reis a organizar e produzir esta mostra é já de si curioso, pois trata-se de peças do acervo da coleção de João Allen, que constituiu o primeiro museu privado de Portugal, no espaço daquele que foi o primeiro museu público de arte de Portugal. De facto, em 1833 D. Pedro IV ordenou a organização do Museu Portuense de Pinturas e Estampas, que incorporava os bens confiscados aos conventos abandonados na sequência da extinção das ordens religiosas. A sua primeira casa foi o Convento de Santo António da Cidade. Mais tarde, em 1940, já com o nome atual, mudou-se para o Palácio dos Carrancas, onde ainda funciona. O seu espólio é vasto e diversificado, abrangendo pintura, gravura, escultura, joalharia, cerâmica, ourivesaria, joalharia, mobiliário, têxteis e vidros. Trata-se de um dos mais importantes museus da Rede Portuguesa de Museus, sendo na cidade do Porto um dos principais espaços museológicos (a par com a Fundação de Serralves).

Portanto, ao celebrar o primeiro museu privado do país, celebra-se igualmente o primeiro espaço museológico nacional que, além do mais, reúne no seu espólio a maioria das obras pertencentes à coleção de João Allen (adquirida na década de 1850 pela Câmara Municipal do Porto e integrada no Museu Nacional de Soares dos Reis na década de 30 do século XX).

A exposição “João Allen: colecionar o mundo” exibe mais de 250 peças, organizadas de um modo temático.

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Parte da exposição é dedicada a percurso biográfico de João Allem

Quem foi João Allen? 

Começa por se apresentar o colecionador. A sua biografia, a sua família e a sua história, pois ninguém se forma sozinho e o carácter e interesses e o papel que cada um vem a desempenhar no mundo muito deve às raízes, meio, educação e influências.

João Allen nasceu no seio de uma família de negociantes britânicos que se dedicavam ao comércio de exportação e importação (vinho do Porto e não só). Foi o décimo primeiro dos doze filhos de Duarte Guilherme Allen e Joana Mazza, mas foi educado por um tio, após a morte da mãe (tinha ele dois anos) e a ida do pai para o Funchal. Esse tio, percebendo o entusiasmo do sobrinho pelo desenho e pintura resolve enviá-lo, aos 12 anos, para os Estados Unidos, matriculando-o na Escola de Georgetown, em Washington (hoje a Universidade de Georgetown). Já é adulto quando regressa. Ou seja, logo a partir dos doze anos João Allen alarga horizontes e ganha mundo, vivendo noutro continente e noutra cultura. Depois, ao longo da sua vida pública e profissional, devido às suas ideias progressistas e liberais e da associação, primeiro à firma que pertencera ao cunhado Joaquim Ferreira de Sampayo e, depois, à firma que fora de um outro cunhado, José Monteiro de Almeida, bem como à sua participação associativa (membro da Feitoria Inglesa, cofundador do Banco Comercial do Porto e da Associação Comercial), outros horizontes se expandirão através dos negócios, das relações públicas, comerciais e sociais, das viagens de negócios e de lazer,  do interesse por peças belas e antigas, da compra de obras de arte e curiosidades

Ainda na apresentação do colecionador, não deixa de se referir a sua ação ao serviço das pátrias lusa e britânica (nas lutas contra a primeira invasão francesa) e a defesa dos ideais do liberalismo. João Allen era membro da Maçonaria e um liberal empenhado e admirador de D. Pedro IV, bem como um crente no progresso e no desenvolvimento. Não é com certeza por acaso que faz parte da sua coleção a pena de pato prateado com que D. João VI assinou a Constituição de 1822.

Viagem e viajantes

De seguida entramos no tema do Grand Tour – viagem e viajantes. Uma das peças mais emblemáticas deste núcleo expositivo é o passaporte de João Allen. Entre setembro de 1826 e finais de 1827 (já casado e com um filho), João Allen realizará um Grand Tour pela Suíça, península italiana (na época constituída por vários reinos) e Piemonte, na companhia da mulher e da sua irmã, Ermelinda Allen, futura 1.ª Viscondessa da Regaleira e dona de uma fabulosa fortuna. O passaporte dessa viagem, agora em exibição, permitiu traçar as etapas da viagem, as cidades visitadas e aquelas onde permaneceram mais tempo. Essa leitura é apresentada num enorme mapa que marca as cidades, os dias de permanência, o itinerário seguido, bem como outros itinerários possíveis (alcançados através de um estudo das estradas e caminhos da época). E esse mapa, construído através da leitura crítica do passaporte, mostra que as urbes onde a estadia se prolongou por mais tempo foram Veneza, Roma e Nápoles. Ora, estes centros eram destinos muito procurados pelos viajantes diletantes das belas-artes e da história, por aqueles que possuíam um interesse especial pela arte e arquitetura (clássica e renascentista), pelas antiguidades, e pelas escavações arqueológicas quer em Roma, quer nas cidades de Herculano e Pompeia.

Para além do itinerário seguido, o visitante tem acesso ao contexto de viagem típico dos viajantes endinheirados desse tempo, através dos objetos que compunham as bagagens. Esqueçam-se as malas, porque essas, apesar de serem muitas e grandes, são óbvias. Apresentem-se os escritórios de viagem, as mini- bibliotecas “ambulantes”, os instrumentos de orientação (como bússolas), as frasqueiras requintadas e objetos pessoais de higiene, de memória e decorativos (retratos miniatura, camafeus, etc), de relacionamento (cartões de visita, contactos de negociantes e artistas) e de turismo (guaches com vistas de locais emblemáticos – os primeiros postais de turismo, souvenirs da viagem tal como pisa-papéis de mármore, etc).

Sabe-se que no exercício dos seus negócios, João Allen viajou muito e por todos os locais onde andou não deixou de adquirir peças para engrossar a sua vasta e abrangente coleção particular. Mas o Grand Tour realizado em 1826-27 parece ter um objetivo claramente cultural e artístico, que espelha os interesses de um homem cultivado e curioso. Nesta viagem toma contacto com marchands e artistas (como os cartões de visita expostos o demonstram) e adquire uma quantidade muito apreciável e de grande qualidade de obras de arte e curiosidades científicas.

Apresentem-se os escritórios de viagem, as mini- bibliotecas “ambulantes”, os instrumentos de orientação (como bússolas), as frasqueiras requintadas e objetos pessoais de higiene, de memória e decorativos (retratos miniatura, camafeus, etc), de relacionamento (cartões de visita, contactos de negociantes e artistas) e de turismo (guaches com vistas de locais emblemáticos – os primeiros postais de turismo, souvenirs da viagem tal como pisa-papéis de mármore, etc).

Joana Ferreira da Silva

A coleção reunida por João Allen – ou melhor dizendo, a seleção aqui apresentada – é, claro, um dos temas principais. Apresentam-se pinturas; antiguidades egípcias, gregas, romanas e peninsulares; dactiliotecas de gesso e terracota; gemas e camafeus; reproduções de medalhas; objetos históricos, artísticos e curiosidades, como peças africanas, chinesas, francesas, pisa papéis, pedras diversas, cerâmicas, biscuits, etc; esculturas; livros provenientes da sua biblioteca, demonstrativos do seu interesse pela história natural, pela biologia, botânica, geografia e numismática; minerais, rochas e fósseis.

É preciso lembrar que João Allen não se limitou a comprar peças individuais, mas também adquiriu coleções, como a coleção Bertrand de história natural (1829) e as coleções de pintura de Brites Adelaide Geraldes Barba e do marquês de Abrantes (1836), o que demonstra uma estratégia clara e comprovada de criar um acervo e a vontade de o mostrar, já que em 1836 faz construir um museu no jardim da sua casa, abrindo-o ao público no ano seguinte.

O Museu Allen 

Na parte dedicada ao Museu Allen, esta exposição pretende com certeza realçar o caráter eclético e enciclopédico da coleção reunida por um homem curioso, viajado e educado no espírito romântico do século XIX.

A pintura representa um dos núcleos mais importantes da coleção. Das 33 obras exibidas (a coleção total teria cerca de 600 pinturas), todas mereceriam menção especial. Talvez a seleção feita pretenda mostrar o largo arco temporal das obras adquiridas pelo colecionador (do século XV ao século XIX), as temáticas variadas (pinturas sacras, históricas, retratos, paisagens e naturezas mortas) e as proveniências diversas (Portugal, Flandres, Itália, Espanha, França, Bélgica e Holanda). De qualquer modo, de referir (sem tirar importância às outras) os sete óleos de Giuseppe Cades, adquiridos durante o Grand Tour à viúva do pintor e que constituem um dos conjuntos mais importantes deste artista fora da Itália, uma marinha de Pillement, a Fuga de Margarida de Anjou, de Vieira Portuense, Junot protegendo a cidade de Lisboa, de Domingos Sequeira, os dois interiores de Bombelli e os retratos de Clouet (Margarida de Valois e Henrique II).

Passada a galeria das pinturas, entra-se no universo inebriante e plural dos muitos interesses de João Allen. Do seu gosto pela antiguidade ao gosto pelo conhecimento enciclopédico.

Joana Ferreira da Silva

Passada a galeria das pinturas, entra-se no universo inebriante e plural dos muitos interesses de João Allen. Do seu gosto pela antiguidade, manifestado pelos exemplares egípcios, os vasos gregos, as lucernas, ao gosto pelo conhecimento enciclopédico exibindo-se obras impressas pertencentes à sua grande biblioteca, bem como rochas, minerais e fósseis, passando pela apetência pela cultura antiga e moderna (camafeus com retratos de poetas, escritores, artistas, representações de deuses e personagens históricas, ou réplicas de obras clássicas e renascentistas e medalhas de personalidades de interesse mundial), sem esquecer os muitos objetos históricos e artísticos denotadores de um gosto marcadamente clássico ou progressista.

Peça de referência incontornável é a fabulosa mesa de biblioteca de João Allen.. Uma mesa de madeira redonda com gavetas, que permitia a utilização simultânea de várias pessoas. No tampo, vários círculos concêntricos de diferentes pedras preenchem a totalidade da superfície. Dos 273 embutidos, a maioria não existente em Portugal, 243 não se repetem. Este tipo de mesas, muito populares em Inglaterra desde a segunda metade do século XVIII, permitiam exibir as amostras de mármores e outros minerais que os viajantes do Grand Tour recolhiam em Itália, ao mesmo tempo que demonstravam o interesse crescente pela História Natural (neste caso, minerais e rochas), pela Ciência (a sua classificação) e pela Educação. No Museu Allen, esta mesa tinha todos os embutidos numerados para que, consultando o seu catálogo, se identificasse o tipo de pedra. Esse catálogo desapareceu, mas a pretexto desta exposição, as pedras embutidas foram de novo classificadas e identificadas.

Outras peças exemplificativas de um pensamento e de um modo de proceder transmitido de pai para filho – como o Livro de Horas flamengo e o Sarcófago das Estações romano, bem como outros objetos exibidos mereceriam igualmente destaque, mas o texto já vai longo e o que importa é mesmo é ver a exposição in loco. No entanto, não se pode fechar este texto sem mencionar o excecional catálogo que acompanha a exposição. Esta publicação comprova o extremo cuidado e empenho com que a mostra foi preparada, na medida em que apresenta interessantes textos de contextualização e documenta todas as peças exibidas. Mas vai além disso. Muitos dos textos do catálogo são resultado de uma nova, cuidada e profunda investigação realizada a partir de determinadas peças e circunstâncias na vida de João Allen, ou tendo como base a coleção e o próprio museu, oferecendo, em diversas áreas do conhecimento, leituras novas e enriquecidas. Um feito conseguido à custa da investigação e pensamento de diversos autores, cuja generosa contribuição permitiu reunir uma produção documental variada e eclética, tão ao gosto da personalidade que se homenageia e que, certamente, faria as delícias de João Allen.

Veja antes se está agendada alguma visita guiada e aproveite depois para visitar o resto do Museu Nacional de Soares dos Reis. Um belo programa para uma manhã ou tarde completas.

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Capa do Catálogo da Exposição

Informações úteis:
Até 30 de setembro
Local: Museu Nacional Soares dos Reis (mapa google)
Palácio dos Carrancas
Rua D. Manuel II
4050 – 342 Porto
Coord. GPS: 41.147709, -8.621550
Bilhete normal de entrada no Museu (acesso a exposições temporárias)
5,00€
Entrada livre ao Domingo até às 14h00.
Contactos
Telefone + 351 223 393 770
E-mail: [email protected]
Horário
Terça a Domingo das 10h00 às 18h00
Página Facebook do Museu – Regularmente atualizada. consulte aqui

Ficha técnica:
Projeto: Maria João Vasconcelos, Rui Morais, José da Costa Reis
Comissário Cientifico: Rui Morais Comissário Executivo: José da Costa Reis/Museu Nacional Soares dos Reis
Projeto Museográfico: João Bernardo Távora

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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