Chicago chamou a atenção dos portugueses mesmo antes da estreia. Só o anúncio da vinda de uma peça destas a Portugal foi motivo de entusiasmo. Depois, uma poderosa estratégia de comunicação, marcada por boas fotografias e por um vídeo promocional estrondoso, colocou as expectativas altas. Tudo isso e a combinação teatro musical e Diogo Infante fizeram desta produção um êxito antes de o ser. Afinal, Chicago vai ou não ao encontro das expectativas? Vamos ver em detalhe.
Depois de Cabaret (2008), Diogo Infante voltou ao Teatro Musical. Sabia, desde o primeiro momento, há mais de um ano, que seria uma produção complicada e estava certo de que não queria limitar-se a uma reprodução daquele Chicago que o público poderia ir ver lá fora. Para não ser esse “franchising”, esta importação exigiu que se trabalhasse a partir de uma versão mais antiga e que não houvesse qualquer semelhança com o Chicago que está hoje em cena pelo mundo, o que representou uma “licença para a criatividade”, nas palavras de Diogo Infante. Este Chicago, este que está no Trindade, é uma versão em português e à portuguesa, feita a partir da direcção, da encenação e do entendimento de Diogo Infante e da sua equipa.
O “primeiro Chicago” de todos, mesmo antes de virar musical em 1975, é uma peça de teatro com o mesmo nome, escrita nos anos 20 pela repórter Maurine Dallas Watkins. E claro que, apesar da adaptação, este Chicago de Diogo Infante continua a contar a história de duas rivais, “estrelas do show business”, acusadas e condenadas por homicídio: Velma e Roxie. O encenador reconhece alguma actualidade no texto original, nomeadamente “a questão de criminosos serem promovidos ao estatuto de estrelas” e o facto de, hoje em dia, haver uma “avidez para se ser notado, referido, mencionado, seja nas redes sociais, seja na própria imprensa.”. Por isso, este Chicago português traz também uma crítica implícita.
Para dar vida às personagens de Chicago, 400 pessoas candidataram-se às audições. Destas, 80 foram seleccionadas para prestar provas: 30 para os protagonistas e 50 para o ensemble (os restantes, sem que isto valha como definição de ensemble). Apenas José Raposo, Gabriela Barros e Catarina Guerreiro tiveram vistos directos para Chicago.
Quem saiu da cave para a ribalta foi Soraia Tavares – da cave da sua sogra, onde gravou o vídeo com a sua candidatura. Segundo contou a própria nas suas redes sociais, depois de ter sido seleccionada para fazer a audição para o ensemble, foi chamada à parte por Diogo Infante, que a convidou para prestar provas para ser protagonista. E lá está ela, hoje, nas tábuas do Trindade, a dar vida a Velma Kelly – uma personagem certamente mais velha, mais densa e mais vivida do que a actriz de 25 anos, o que faz de Soraia Tavares uma das grandes revelações desta produção, pelo seu magnífico trabalho de interpretação aliado a um exercício físico e vocal que não é para todos.
Este olhar atento de Diogo Infante não se manifestou apenas na selecção de Soraia Tavares. Chicago é uma lição de gestão artística estratégica. Não é sobre fazer-se com o que há. É sobre ir buscar o que há de melhor e ainda tirar o melhor que há em cada um e em cada coisa. Ali no Trindade são todos um, todos são Teatro. Não se distingue quem é habitualmente bailarino ou actor, não se pensa “agora entrou o protagonista” ou “chegou o momento dos bailarinos”. Mas, para os que sabem quem é quem, o que salta mais à vista em Chicago é ver bailarinos com microfones, actores a dançar os mesmos passos que os bailarinos, músicos em cena com os actores, bailarinos a cantar com os cantores e a actuar com os actores (até com falas). Não haver o grupo dos cantores, dos actores e dos bailarinos foi, segundo as declarações de Diogo Infante no ensaio de imprensa, mais do que uma restrição orçamental – era uma opção dramatúrgica.
Em contrapartida, talvez não abundem momentos musicais com harmonias pele de galinha nem “oitos de
coreografia” de cortar a respiração – apesar de que tudo o que se vê e se ouve ser brilhante. Mas abunda Teatro a sério: integralmente executado ao vivo e a cheirar a verdadeiro. Um trabalho sério que permitiu montar a obra-de-arte em apenas seis semanas. Tudo isto pode ser uma banalidade para quem vê espectáculos lá fora mas, em Portugal, não é assim tão frequente – pelo menos a este nível.
A rentabilização de recursos aplicou-se também ao próprio espaço: usou-se tudo o que o Trindade tinha para oferecer. É importante destacar isto mas, para que não se desvendem aqui todas as surpresas, fica a sugestão para que o espectador esteja atento: usou-se mesmo tudo, até ao limite. Mas, em consequência de este espectáculo estar feito (e muito bem) à medida do Trindade, dificilmente sairá em digressão.
Por outro lado, toda esta mistura de peças talvez não tenha tido a engrenagem mais interessante nalguns momentos, nos quais qualquer coisa não batia certo: são exemplos a alternância abrupta entre registos de entoação (por vezes “abonecados”, por vezes realistas) ou o recurso a estilos de cena e contracena diversos (por vezes mais “crus”, por vezes mais fantasiosos) ou, às vezes, a diversidade pouco unificada entre o teatro à antiga e as novas formas de fazer, ou entre as formas de comunicar mais concretas e as mais abstractas. Talvez estas divergências entre várias linguagens sejam oleadas com a rodagem do espectáculo, pelo menos aquelas que mais se reflectem na interpretação dos actores.
Este Chicago é bom porque junta peças simultaneamente arrojadas e simples. É uma coisa pequena, por não se querer fazer passar por maior, e mesmo assim é em grande.
Esta viagem até ao Chicago dos anos vinte acontece sem que haja, segundo os propósitos do encenador, uma grande datação histórica nos elementos que compõem o espectáculo – os anos vinte são apenas um ponto de partida. Mas não se pense que isso rouba profundidade à história. Pelo contrário. Assistir a este espectáculo dá a sensação de que há mais história para além daquela que é contada, porque, para além de Roxie e de Velma, há ali muitas outras vidas cheias de vida. Isto consegue-se porque, naquele palco, todos são actores – ou todos fazem de actores. Não se trata só da Velma, da Roxie e dos figurantes. Até os músicos (apenas seis, a valer por sessenta) não só estão em cena como fazem parte da cena.
Bom Teatro com fogo de artifício pode ser, ou não, bom Teatro. Bom Teatro sem fogo de artifício é sempre bom Teatro. Mas, afinal, o que é bom Teatro? Afinal, hoje, o que é o Teatro? Assistir a Chicago pode auxiliar na procura destas definições. É que esta produção tanto tem plumas e escadarias como tem diálogos simples e fortes à volta de uma mesa banal sob um fundo preto. Tanto tem paredes a subir e a descer como trocas de cena básicas mas elegantes. Só há purpurinas quando a cena é sobre purpurinas. Este Chicago poderia ser feito na rua, num pavilhão ou num coreto que continuaria a ser bom. Aqui não há artifícios: o fogo são os artistas em cena (cujos talentos se vêem bem explorados ao máximo) e todos aqueles cujos nomes se podem ler na ficha técnica.
Este Chicago é bom porque ali são todos um só, todos são aquele Chicago. Este Chicago é bom porque junta peças simultaneamente arrojadas e simples. É uma coisa pequena, por não se querer fazer passar por maior, e mesmo assim é em grande.
Em cada uma das peças que o compõem, talvez Chicago não traga nada de novo. Mas certamente se inventou um novo jeito de fazer, um novo jeito de inventar o que já estava inventado. Chicago é um marco no Teatro em Portugal. Possamos nós, o público, apoiar não só marcos como este mas também aqueles que ainda não são marco nenhum, para que um dia o sejam.
Fotografia de capa: © Luís Ribeiro da Silva
Teatro da Trindade
Morada: R. Nova da Trindade 9, 1200-301 Lisboa (Mapa Google)
Telefone: 21 342 3200
Página de Facebook do Teatro da Trindade.
Bilhetes: aqui
FICHA ARTÍSTICA
De: Fred Ebb e Bob Fosse
Música: John Kander
Tradução: Ana Sampaio
Tradução canções: Rui Melo
Encenação: Diogo Infante
Com Gabriela Barros, Soraia Tavares, Miguel Raposo, José Raposo, Catarina Guerreiro, Ana Cloe, Carlota Carreira, Catarina Alves, Filipa Peraltinha, Leonor Rolla, Mariana da Silva, Sofia Loureiro, David Bernardino, Gonçalo Cabral, João Lopes, JP Costa, Pedro Gomes e Ricardo Lima
Direção musical: Artur Guimarães
Coreografia: Rita Spider
Cenografia: F. Ribeiro
FIgurinos: José António Tenente
Desenho de luz: Paulo Sabino
Desenho de som: Nelson Carvalho
Coprodução: Teatro da Trindade INATEL e Força de Produção
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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