Sopro, com texto e encenação de Tiago Rodrigues, esteve em cena em Novembro de 2017 na sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, depois de ser levado com enorme sucesso ao Festival de Avignon, em França. Posteriormente andou pelo mundo (de Paris a São São Petersburgo), regressando agora (de 11 a 19 de janeiro) à sala Garrett. É uma peça de homenagem, podemos dizer, à profissão de ponto e assim também a todos os que fazem do teatro a sua vida.
De facto havia um tempo em que quando os atores se esqueciam das suas falas, as famosas “brancas”, alguém mesmo ali numa caixinha escondida por debaixo do palco, após o tempo devido de espera, sussurrava as deixas salvando assim a peça de um desastre iminente. Hoje esse alguém já é raríssimo nos teatros portugueses. Os pontos profissionais já não existem e aos atores não lhes resta mais do que decorar minuciosamente as suas falas, ou esperar por uma iluminação divina ou em último caso improvisar.
Dizer que os “pontos profissionais já não existem” é um manifesto exagero. Eles existem. São dois e trabalham ambos no Teatro Nacional D. Maria II. Um destes pontos é a protagonista desta peça, Cristina Vidal. É a protagonista mas não é atriz. E sim, está em palco o tempo todo, tal como os atores. Não, não é atriz.
Ponto há mais de 40 anos, Cristina Vidal é uma testemunha privilegiada da memória do teatro. Por razões familiares, desde pequena que a sua segunda casa é o teatro. Ironicamente viu a sua primeira peça aos 5 anos, escondida na caixa do ponto para não ser vista pelo público. E desde 1978 que trabalha como ponto no Teatro Nacional D. Maria II. Ao longo de 40 anos de carreira são muitíssimas as histórias que tem para contar sobre o teatro em Portugal.
Sopro é uma peça difícil de explicar e que realmente tem de ser vista para se perceber na sua totalidade. Esta recensão verificar-se-á insuficiente. No entanto, para tentar pôr em palavras o que se vive em cima do palco do D. Maria II, é importante dizer que o fio condutor da peça é uma conversa que se passou verdadeiramente entre o autor e encenador da peça, Tiago Rodrigues, e Cristina Vidal no “Ponto de Encontro”, café ao lado do D. Maria. O tema da conversa era a razão pela qual Cristina deveria aceitar ser a “protagonista” de uma peça a ser levada à cena pelo Teatro Nacional. Estamos assim perante um final anunciado. O público sabe que ela está ali em palco e que portanto aceitou. O que resta perceber é o que a levou a isso. A conversa vai evoluindo para esse desfecho e pelo meio Cristina vai contando histórias que marcaram o seu trajecto profissional.
O cenário é um palco em ruínas, quase que a antecipar um futuro em que tudo o que resta são as memórias dos atores e personagens que por ali passaram. Memórias essas que ganham vida com aquela mulher que faz de ponto.
Mas o que acontece em cima do palco não é apenas Cristina Vidal a fazer de si própria. Há 5 atores nesta peça. Duas atrizes que se desdobram na personagem de Cristina (Beatriz Brás e Sofia Dias), um ator que interpreta o encenador (Vítor Roriz), e um ator e uma atriz que vão interpretando as várias histórias que são contadas ao longo da conversa (João Pedro Vaz e Isabel Abreu). E a própria Cristina Vidal sempre em palco. Não a representar mas sim a pontar os atores. Deixa de estar na sombra e está completamente à vista a fazer o seu trabalho, a soprar as palavras a quem as tem de dizer.
O cenário é um palco em ruínas, quase que a antecipar um futuro em que tudo o que resta são as memórias dos atores e personagens que por ali passaram. Memórias essas que ganham vida com aquela mulher que faz de ponto.
O que é realmente interessante e belo nesta peça é o desaparecimento do palco de Cristina Vidal (a ponto e não a personagem), sem o fazer realmente. Uma “invisibilidade psicológica” que nos faz esquecer que está ali uma mulher constantemente por detrás dos atores a sussurrar-lhes as palavras, uma mulher que sendo a protagonista da história deixa o protagonismo todo para os atores. Tal e qual a função dos pontos.
Em o Sopro as histórias que nos são contadas ajudam a perceber a humanidade do teatro. Por exemplo, a divertida situação passada na encenação de O Avarento, de Molière, em que o ator improvisava todas as suas falas. Ou o impressionante episódio da atriz da Antígona de Sófocles que antes de entrar em cena soube que o seu irmão tinha morrido. Ou até mesmo, no desfecho da peça, quando a própria Cristina Vidal levanta pela primeira vez o tom de voz, sozinha no palco, para dizer os versos finais de Berenice, de Racine. Versos esses associados à primeira grande branca de uma atriz a quem não se pensasse que isso pudesse acontecer.
Todas estas histórias contadas pela protagonista Cristina Vidal são uma homenagem ao teatro. Uma homenagem que nos aponta para fragilidade do ator, na beleza da sua humanidade.
Nota: Este artigo foi publicado no Caderno Cultural da Revista Brotéria aquando da representação da peça em 2017.
Foto de destaque: © Filipe Ferreira
Local: Sala Garrett – Teatro D. Maria II (Mapa Google)
Data: 11 a 19 de janeiro
Preços e Informações
Contacto: 800 213 250
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Ficha artística (2019)
Texto e encenação: Tiago Rodrigues;
com: Beatriz Brás, Carla Bolito, Cristina Vidal, Isabel Abreu, Marco Mendonça, Romeu Costa;
cenografia e desenho de luz: Thomas Walgrave;
figurinos: Aldina Jesus;
sonoplastia: Pedro Costa;
assistente de encenação: Catarina Rôlo Salgueiro;
tradução: Thomas Resendes;
legendagem: Rita Mendes;
produção: TNDM II;
coprodução; ExtraPôle Provence-Alpes-Côte d’Azur, Festival d’Avignon, Festival Terres de Paroles SeineMaritime – Normandie, La Criée Théâtre national de Marseille, Le Parvis Scène nationale Tarbes
Pyrénées, Teatro Viriato, Théâtre de la Bastille, Théâtre Garonne scène européenne;
apoio ao espetáculo: Onda
Ficha Artística (2017)
Duração: 1h45
Classificação: M/12
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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