Última obra de uma trilogia dedicada a dramas sociais e familiares (“A omissão da família Coleman”, 2005 e “Terceiro Corpo”, 2008), este “O vento num violino” traz-nos a história paralela de duas famílias em tanto diferentes, mas unidas por um mesmo desígnio: a recusa de ceder perante as dificuldades e sofrimentos da vida, a busca permanente de cumprir o profundo desejo de felicidade e realização. Claudio Tolcachir (Buenos Aires, 1975) envolve-nos num entrecruzar de dramas familiares, onde somos confrontados com a força do amor no correr dos dias destas famílias: é por ele que uma mãe procura um futuro para o seu filho dissoluto, é por ele que outra mãe se preocupa com a saúde da sua filha e que aceita aquilo que nela lhe custa compreender, é até por ele que duas mulheres procuram um filho que tanto desejam, sem olhar a meios.
“Histórias de pessoas em busca da vida. E o amor que atravessa tudo, que permite tudo, o bom e o mau. O amor de pensar a vida de outro modo e aceitá-la, talvez, em nome do amor.” (sinopse)
Se há uma descrição possível da experiência que esta peça constituirá para quem a ela assista é a da velocidade vertiginosa com que somos confrontados com as entranhas mais profundas da natureza humana, naquilo que tem de mais sombrio e de mais desafiante. Em “O vento num violino”, vemos gente desamparada, perdida no meio de vidas sem rumo, mas também uma mesma gente que não desiste de lutar por se encontrar consigo e com a sua felicidade. Nas palavras de Jorge Silva Melo, “pessoas infelizes, mas não tristes, desgraçados não submersos na depressão, pessoas que, apesar de tudo, tentam viver”.
“Histórias de pessoas em busca da vida. E o amor que atravessa tudo, que permite tudo, o bom e o mau. O amor de pensar a vida de outro modo e aceitá-la, talvez, em nome do amor.”
Reflexão interessante lançada por Claudio Tolcachir é a de saber até onde pode ir o amor de uma mãe por um filho que não tenha na sua raiz uma genuína disposição de tornar o ser amado verdadeiramente livre. Com Mercedes, mãe de Darío (na intensidade característica de Isabel Muñoz Cardoso – fazendo lembrar a sua Amanda em “Jardim Zoológico de Vidro”, igualmente pelos Artistas Unidos), somos colocados perante o dilema de saber se deve uma mãe, por amar tanto o seu filho, chegar a viver a vida por ele, procurando protegê-lo e controlá-lo, mesmo que aparentemente se queixe da sua inércia e apatia. Di-lo também o autor: “As personagens chegam a limites extremos sempre justificados pelo seu amor incondicional por outro ou por um desejo”. No fundo, aqui se joga a necessidade indispensável de saber amar, sobretudo se incondicionalmente, com a capacidade de viver esse amor de uma forma ordenada e equilibrada. Não um amor que de tanto amar se torne cego e sufocante, mas aquele amor que, respeitando a liberdade do outro, procura entregar-se inteiramente por ele, tal como nos sugere a frase que abre esta peça: “Tudo o que vejo está nos teus olhos.”
Ponto também curioso a destacar é o da relação tempestuosa entre Santiago e Darío, psicoterapeuta e paciente. Tendo por base a grande riqueza psicológica da personagem de Darío (e destaque-se aqui a assinalável prestação do jovem actor Pedro Baptista), podemos assistir ao desenrolar de uma ligação que se vai tornando cada vez mais conflituante, à medida que o paciente, percebendo-se cada vez mais exposto interiormente ao seu terapeuta, reclama uma maior igualdade no nível de abertura e honestidade que ambas as partes demonstram. Alterando a dinâmica usual neste tipo de quadro, cria-se um interessante momento teatral, muito bem defendido por uma fluida e convincente contra-cena entre Pedro Baptista e Pedro Carraca (Santiago).
De notar ainda em Tolcachir uma interessante capacidade de salvar o macabro com o humor, provocando bons motivos cómicos no meio das cenas mais duras e sórdidas da peça. Onde a crueza da cena possa provocar desconforto, quase sempre se seguirá um riso descompressor. Como um pequeno raio de luz que ilumina toda uma sala, somos recordados de que no meio do pântano e da dor, também se podem manifestar claros sinais de esperança e redenção.
A terminar, algumas notas técnicas que nos parecem de destaque. Continua a ser motivo de grande admiração a capacidade que Silva Melo e a sua equipa demonstram para, com tão poucos recursos, trazerem a palco algum do melhor teatro que se vai podendo assistir nos dias de hoje. Será sempre justo registar a surpreendente habilidade de, num tão diminuto espaço cénico, fazer viver três cenários distintos sem que praticamente uma peça se mova em toda a cenografia. Ainda para mais, quando, como nesta obra de Tolcachir, as cenas se sucedem galopantemente umas às outras, numa permanente mudança entre a casa de cada uma das mães e o consultório de Santiago. Para esse sucesso, distinga-se igualmente a qualidade do desenho de luzes, de uma contenção e simplicidade muito próprias do que temos visto de Pedro Domingos. A lamentar só o reduzido número de público na assistência (nem meia casa), o que nos deveria fazer reflectir acerca da atenção dada ao teatro menos comercial no nosso país.
Talvez uma das frases mais marcantes de todo o texto seja, já próximo do fim da peça, um lamento quase tresloucado de Mercedes: “A vida não tem sentido e isso é maravilhoso.” Muitas seriam seguramente as chaves de leitura a dar a esta proclamação filosófica tão cortante. Pela nossa parte, não deixamos de olhar para ela como um convite a redescobrir a maravilhosa beleza de uma vida vivida à procura desse tal sentido redentor. Esta aparente rendição final de Mercedes perante a dificuldade de encontrar um sentido a dar a tantas desilusões, tristezas e fracassos, serve-nos mais como desafio a que não deixemos de alimentar esse desejo profundo de encontrar na Beleza, no Bem e na Verdade o sentido último da existência. Como aquele sentido que se pode achar na serenidade de uma tarde de Outono com o vento a bater-nos na cara, enquanto nos deixamos maravilhar pelas cordas de um violino ao serviço das partitas de Bach.
Fotografias: © Jorge Gonçalves
Em cena de 5 de Setembro a 13 de Outubro no Teatro da Politécnica, Príncipe Real (mapa Google)
FICHA ARTÍSTICA
Autor: Claudio Tolcachi
Encenação Colectiva, orientada por Jorge Silva Melo
Cenografia e Figurinos Rita Lopes Alves
Luz Pedro Domingos
Tradução Antónia Terrinha e Rita Bueno Maia
Com Andreia Bento, Isabel Muñoz Cardoso, Margarida Correia, Pedro Baptista, Pedro Carraca e Sara Inês Gigante
INFORMAÇÕES
Contactos:
Tel: 213 916 750
Tel: 213 876 078
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Bilheteira
961960281
Preços:
Normal | 10 Euros
Descontos | estudantes | – 30 | + 65 | Grupos >10 | Protocolos | Profissionais do espectáculo | Dia do espectador (3ª) – 6 Euros
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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