Carmen Dolores estreou-se como actriz em 1945, com a Companhia “Os Comediantes de Lisboa”, nas tábuas do Teatro da Trindade. Depois de mais de 60 anos de carreira, despediu-se dos palcos em 2005, com a peça “Copenhaga”, de Michael Frayn. Hoje, a sala principal do Trindade tem o seu nome. É na Sala Carmen Dolores que está em cena “A Pior Comédia do Mundo”, com Fernando Gomes a encenar a partir de um texto do século passado, da autoria de Michael Frayn.
Comprar bilhete para ver “A Pior Comédia do Mundo” é o mesmo que dizer “pague 1, leve 3”. É que, experimentando as perspectivas tanto da plateia como dos bastidores, sem sair dos seus lugares, o público é convidado a estar no teatro, no teatro do teatro e no teatro do teatro do teatro. Ali, há actores a fazer de actores. E cada um desses actores-personagens, em jeito de personagem-tipo, pelas suas maneiras de ser e de fazer, representa um tipo de actores. Chamemos-lhes então actores-tipo. Há também, considerando o tipo de peça que é, o encenador-tipo, o técnico-tipo e a directora de cena-tipo.
Não se pense que se trata de um exercício difícil apenas para o autor, para o encenador ou para os actores: é um exercício difícil e divertido também para o espectador que ora está a ver teatro no teatro, ora está a ver teatro no teatro no teatro.
Ao longo de duas horas de espectáculo, acompanhamos estes tipos numa sala de ensaios, num palco de um teatro e ainda nos bastidores. Não se pense que se trata de um exercício difícil apenas para o autor, para o encenador ou para os actores: é um exercício difícil e divertido também para o espectador que ora está a ver teatro no teatro, ora está a ver teatro no teatro no teatro. O que seria equivalente a dizer que ora está a ver “A Pior Comédia do Mundo” no Trindade, ora está a ver “Tudo Nu” n’ “A Pior Comédia do Mundo” no Trindade. Por isso, este será talvez o único género em que o público não se importa de pagar bilhete para ver maus actores, porque os há: não os exímios actores dirigidos na vida real por Fernando Gomes, mas os actores-personagens. Nota especial para a personagem de Inês Aires Pereira, que é uma actriz-personagem fraquíssima causando gargalhadas gerais em cada intervenção.
Há tanta comédia na peça como na peça da peça, que é um pretexto para conhecermos os bastidores do Teatro. Não se trata apenas de ver como é fisicamente a parte de trás do cenário, que roda de maneira simples e genial à vista do público. Trata-se de conhecer também um pouco do processo de ensaios, da gíria entre a equipa, dos afazeres antes de subir o pano… no fundo, é dado a conhecer o que muitos não conhecem. Quem sabe do mundo dos bastidores reconhece alguém ou reconhece-se a si mesmo nalguma personagem; quem não faz ideia do que isso é pode matar a sua curiosidade. Mas não se pense que “A Pior Comédia do Mundo” é apenas uma visita guiada a bastidores. Este é um espectáculo para rir até mesmo do que, simplesmente contado, não teria, por razões diversas, graça nenhuma.
O pano sobe e vêem-se oito portas no interior de uma casa. O telefone toca. O suspense começa. Que porta irá abrir? Quem vem lá? Começa imediatamente o desafio de distinguir entre o teatro e o teatro dentro do teatro. Desafiante é também perceber em que ano se situa cada um daqueles níveis: se, por um lado, há um telefone e um televisor antigos, a cenografia da casa tem traços modernos e em certos momentos fala-se em euros.
O último ensaio
Nesta primeira fase do espectáculo, o público real, o que pagou bilhete para ver “A Pior Comédia do Mundo”, assiste ao último ensaio de “Tudo Nu”. E é aí que começa a experiência de uma espécie de teatro imersivo, porque fisicamente o público está entre o encenador, posicionado atrás da plateia, e os actores, no palco. Parece então que estamos mesmo lá, subitamente sentados para assistir a um ensaio. Isso pode ser desde logo motivo de surpresa para o tipo de espectador, ou talvez espectador-tipo, que (ainda) pensa que, para se fazer uma peça de teatro, basta viver num mundo de fama e glamour (na verdade, sobretudo em programas de televisão que mostram os bastidores, é esse o mundo que é dado a conhecer), decorar umas falas, ter dois ou três ensaios assim rápidos e à hora que der jeito, vender bilhetes e abrir as portas. Pode também ser motivo de surpresa conhecer (ou, pelo menos, imaginar) um pouco da humanidade que há em cada artista ou profissional das artes de palco e, partindo das personagens, que são actores feitos por actores, pensar um pouco sobre os próprios actores que se apresentam nesta peça à moda antiga, sem microfones nem qualquer forma de captação de som, mas fazendo-se ouvir até no foyer do Trindade.
A noite de estreia
Depois do intervalo, é noite de estreia. Todas as portas de acesso às várias divisões da casa, que tantas vezes se abrem e se fecham, vão agora dar ao mesmo sítio: aos bastidores. É dessa perspectiva que agora se assiste ao espectáculo do espectáculo. Nesta fase, explicam-se algumas das coisas que ficaram subentendidas na primeira parte. A memória daquilo que ficou ensaiado permite perceber que, do lado de lá, no palco, nem tudo está a correr como previsto e até o público, já imerso naquele universo, sofre por antecipação: há uma valente intriga em bastidores e uma violenta lufa-lufa. Poderia pensar-se que algumas sequências de acção são executadas de improviso, não houvesse uma minuciosa sincronização de abrir e fechar de portas, falas, trocas de olhares, marcações, passagens de adereços e vários acontecimentos ao mesmo tempo. Com tudo isso em simultâneo, chegando até ao ponto de todo o elenco estar em cena, poderia facilmente não se perceber nada. Mas não é isso que acontece, demonstrando a poderosa imaginação do autor, a maestria do encenador e o excelente exercício de concentração do elenco – é que, neste dominó teatral, claramente, bastará um actor não fazer a coisa certa, no segundo certo, no local certo, para a cena, que é gradualmente mais intensa, perder toda a piada. Gradualmente mais intensa é também a adrenalina e a vontade de rir da plateia, chegando a um ponto de terapia do riso em que já nos rimos apenas porque todos se riem.
Fernando Gomes na encenação e Eric da Costa na cenografia fazem lembrar “Suite 647”, que foi outro êxito teatral de portas a abrir e a fechar e onde também era necessário que o público dedicasse uma concentração especial para conseguir acompanhar a narrativa. Ainda sobre Fernando Gomes, é engraçado notar como dirigiu o elenco, incluindo o actor José Pedro Gomes a fazer de encenador, e ainda participa como actor – dando vida a uma personagem tão divertida quanto dramática, a qual tem, naturalmente, efeitos trágicos e cómicos na peça da peça.
De volta à plateia
A caminho do final, chega o momento de o público voltar à perspectiva da plateia para ver a peça da peça, algures no final da digressão, e, assim, ser agora uma espécie de público-personagem. Porque o teatro é uma obra de arte executada ao vivo e porque as coisas podem correr bem ou mal, claro que essa peça da peça corre mal. Aliás, corre muito mal, não fosse esta “A Pior Comédia do Mundo”… mas acaba bem. Apesar de toda a intriga, há naquela equipa o sentido disso mesmo – o sentido de equipa, o sentido de precisarem uns dos outros para chegar à meta, o sentido de “o sucesso dele ser o meu sucesso”. É em equipa que ultrapassam as dificuldades criadas pela própria equipa, cumprindo o objectivo comum de fazer acontecer o espectáculo.
Falar deste espectáculo como uma oportunidade para rir e conhecer um pouco do mundo dos bastidores talvez não fosse um mau resumo. Mas a função da obra de arte vai para lá do mero entretenimento. Assim como as personagens dos actores-personagens são diferentes deles, também os actores-personagens são diferentes dos elementos do elenco d’ “A Pior Comédia do Mundo”. Por isso, esta peça não é uma exaltação do artista enquanto pessoa mas pode ser uma oportunidade para vê-lo para além das suas personagens. Fazendo o público sentir-se lá, esta peça dá a ver o outro lado, o lado do ser além do parecer. A descoberta dos bastidores do teatro é também uma oportunidade de reflexão, um convite a “ver com outros olhos” que pode não se esgotar nos artistas. Para além disso, cada um daqueles tipos representa defeitos e virtudes que são da humanidade em geral, que são de cada um de nós. Por isso, mesmo que não sejamos artistas, podemos levar estas lições para casa e aplicá-las aos nossos ambientes de trabalho, aos nossos próprios mundos. E é tudo isto que faz com esta não seja “A Pior Comédia do Mundo”.
Foto de capa: Foto do Ensaio – Filipe Ferreira
Informações:
Teatro da Trindade (Mapa Google)
Largo da Trindade, 9
1200-301 Lisboa
Coordenadas GPS N: 38º42’43″W: 09º08’33”
Sala Carmen Dolores
12 de setembro a 27 de janeiro
Quarta a sábado – 21:00
Domingo às 16:30
Teatro | M12
Entre 29 de outubro e 21 de novembro não há espetáculo
Bilheteira
Tel: 213 420 000
E-mail: [email protected]
Horário
terça a sábado: 14:00 às 20:00
domingo: 14:00 às 18:00
Dias de espetáculo até 30 minutos após o início
segunda: encerrada
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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