Ir ao Museu: “Terra a dentro – A Espanha de Joaquín Sorolla”

Exposição patente até 31 de março no Museu Nacional de Arte Antiga é organizada em pareceria com o Museo Sorolla de Madrid e reúne 118 pinturas de Joaquín Sorolla y Bastida. É esta a sugestão da Brotéria para esta semana.

Exposição patente até 31 de março no Museu Nacional de Arte Antiga é organizada em pareceria com o Museo Sorolla de Madrid e reúne 118 pinturas de Joaquín Sorolla y Bastida. É esta a sugestão da Brotéria para esta semana.

1. O pai de Joaquín Sorolla y Bastida era aragonês (Teruel) e a mãe valenciana. Humildes comerciantes de tecidos fixaram-se em Valência, onde meses depois, em 1863, nasceu o nosso Joaquín. Tinha este dois anos quando os pais morreram de uma epidemia de cólera, aliás com poucos dias de diferença. Juntamente com a irmã Concha, à data com um ano, foram recolhidos pelos tios maternos. O tio era serralheiro.

Joaquín frequentou a Escola Normal até 1872, passou ao Instituto do Ensino Secundário em 1875, e aí o interesse demonstrado pelos estudos não foi muito. Dotes para o desenho, isso tinha, e por isso o tio pô-lo a aprendiz na sua oficina e à noite a frequentar as aulas de desenho, de Cayetano Capuz. Em 1878 ingressou mesmo na Escola de Belas Artes de S. Carlos em Valencia, onde recebeu a influência do professor e pintor Salvá Simbor. Este estivera em França, e daí que uma primeira referência que foi transmitida a Joaquín tivesse sido o paisagismo da Escola de Barbizon.

Exposição patente até 31 de março no Museu Nacional de Arte Antiga é organizada em pareceria com o Museo Sorolla de Madrid e reúne 118 pinturas de Joaquín Sorolla y Bastida. É esta a sugestão da Brotéria para esta semana.

A partir de 1879, com 16 anos, já participa em concursos e exposições, ganhando prémios. Termina esta fase da formação em 1881. Visitou então o Prado, em Madrid e ficou muito impressionado com Velázquez, de tal modo que a iluminação alta, os interiores escuros ou ainda uma composição barroca em diagonal, iriam aparecer em muita da sua pintura e foram consideradas influências do mestre.

Terceira influência, através do pintor valenciano Ignacio Pinazo, foi a dos “Machiaioli” italianos, pintores “da mancha”, que em Itália irrompiam a partir de Florença.
Joaquín trabalhou afanosamente em pinturas de paisagem, de interiores, retratos, mas também em temas religiosos e de história. Ganhou fama e obteve um bolsa para ir para Roma como pensionista da Academia Espanhola, o que ocorreu em 1885. A partir de Itália aproveitou para passar uns meses em Paris, então a meca mundial do mundo artístico. Descobre o que aí se fazia e as obras expostas nos museus da “cidade-luz”.

Sorolla fez o seu “tour d’Italie”, de Veneza a Nápoles, e regressou a Valência, em 1888, para casar com Clotilde, filha de um fotógrafo famoso da época que já o tinha ajudado, monetariamente, nos primórdios da sua carreira. Joaquín foi viver com a mulher para Assis, mas em 1890 já estava de volta a Espanha para se instalar em Madrid. Dir-se-ia que acabou, então, o seu período de formação.

Joaquín trabalhou afanosamente em pinturas de paisagem, de interiores, retratos, mas também em temas religiosos e de história. Ganhou fama e obteve um bolsa para ir para Roma como pensionista da Academia Espanhola, o que ocorreu em 1885

2. Nos dez anos seguintes Sorolla mandou inúmeros quadros, dos mais variados temas, a exposições e salões de Espanha e do estrangeiro. É a época da consolidação, responsável pela sua consagração como pintor, aquém e além-fronteiras.
Bastante mais liberto das condicionantes das encomendas, o nosso artista realiza-se cumprindo melhor a sua vocação, e é então que surgem os seus quadros com temas do chamado realismo social, muito em voga então em Espanha. Paralelamente, a pintura de costumes atinge na sua obra um enorme expoente.

O dito realismo social tira por certo partido dos sentimentos de comiseração que desperta no público e corre o risco de cair, diríamos hoje, num sentimentalismo “kitsch”. Os títulos também ajudavam muito e fica claro um propósito de denuncia de situações relacionadas com injustiça social.
Se olharmos para “Outra Margarida” (uma jovem aterrorizada, escoltada pela polícia, que viaja num compartimento de terceira classe de um combóio, ao que se sabe, para ser julgada por infanticídio), ou para “Ainda dizem que o peixe é caro” (cena do fundo de um barco onde se tenta reanimar um rapaz), sente-se logo a problemática emotiva que se quer transmitir. Em “Tráfico de brancas” confrontamo-nos com a entrega à prostituição de raparigas muito novas que vão, mais uma vez num combóio, para a cidade. “Triste herança” é talvez o mais conseguido deste lote. Aí se vê um largo grupo de rapazes a tomar banho na praia, mas dois deles, em primeiro plano, estropiados e de muletas, revelam muita dificuldade em entrar na água. São então ajudados por um monge que presumidamente os acompanhou. Mas o religioso está de costas, enorme e todo de negro. Enche a tela com o dramatismo pretendido.

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Museu Sorolla de Madrid

A pintura de costumes, herdeira sem dúvida da “pintura de género” dos séculos anteriores, assumiu nesta fase, em Sorolla, a modalidade a que alguém chamou “costumbrismo marinero”. Trata das gentes do mar e concentra-se no levante espanhol. Surgem então as telas que, na posteridade, por certo mais fama deram a Sorolla, em que este se liberta dos conteúdos literários e apura a sua técnica solta, valente, sumária.

Praias, mar, cintilações de luz, corpos molhados, barcos, velas, contrastes entre a luz de chapa e a sombra. Gente alegre transmite um gosto de viver meridional contagiante. E tudo com uma pincelada rápida e eficaz, larga, a fazer-nos sentir um vento suave. Sorolla transforma o branco em cor.
Não se trata de exibir virtuosismos. Revela-se sim um completo domínio na execução dos seus propósitos, a roçar a excelência.

3. Sorolla passou, nesses tempos a viajar muito, e as deslocações ao estrangeiro tinham também a ver com as exposições individuais suas que foram organizadas. A de Paris, em 1906 cujo sucesso foi enorme, no ano seguinte foi Berlim, Colónia, Dusseldorf e, em 1908, Londres. Depois expôs nos Estados Unidos e aí o êxito voltou a ser estrondoso. Buffalo, Boston e Nova Iorque, esta última com 160 000 visitantes. Em 1911 novamente a América do Norte, Chicago e S. Louis.

Entretanto, nestes anos, nota-se uma influência da pintura que se fazia em França, com a paleta mais retraída e os tons suaves. É o caso das telas que pintou em Biarritz ou em Zarauz e San Sebastian, no País Basco.
Sorolla passou então a ser o retratista da moda e tinha que satisfazer imensas encomendas. Mesmo assim, também pintava temas que escolhia só a seu belo prazer. Aconteceu por exemplo com muitas paisagens e os recantos de jardins, da própria casa de Madrid, do Alhambra em Granada, ou dos Reales Alcazares de Sevilha. Sempre em jeito intimista, sem grandes panorâmicas.

A partir de 1911, face ao sucesso obtido nos Estados Unidos, o trabalho do pintor foi dominado pela encomenda da “Hispanic Society of America”, de Nova Iorque, para fazer a decoração interior, com painéis murais. Eram telas a óleo, e tinham, na encomenda, numa extensão de 70 metros de comprimento por 3 ou 3,50 de altura.
O tema eram representações com cariz etnográfico da vida de então em Espanha, mas, curiosamente, também em Portugal. Dois anos depois acordou-se em eliminar Portugal, e, mesmo assim, a tarefa apresentou-se como gigantesca. Valia, à época, 150 000 dólares.

Sorolla entregou-se a um trabalho extenuante para os seus cerca de cinquenta anos, trabalho que duraria até 1919. Calcorreou a província espanhola para recolha de paisagens, cenas típicas, personagens e trajes. De verão e inverno, mal alojado e, nos últimos tempos, já só se deslocava acompanhado por familiares. Multiplicaram-se os trabalhos preparatórios às dezenas, em desenho, em pinturas a óleo ou guache, a que se seguiu a execução dos painéis. Os últimos foram feitos no próprio local, em Nova Iorque, omitindo já muitos estudos prévios.
Não terá sido então, por acaso, que em 1920 Sorolla teve um ataque e ficou hemiplégico. Viveria até 1923, morrendo em Cercedilla, perto de Madrid. Falecia assim um verdadeiro génio da pintura.

Praias, mar, cintilações de luz, corpos molhados, barcos, velas, contrastes entre a luz de chapa e a sombra. Gente alegre transmite um gosto de viver meridional contagiante. E tudo com uma pincelada rápida e eficaz, larga, a fazer-nos sentir um vento suave. Sorolla transforma o branco em cor.

4. E, no entanto, iria cair num estranho esquecimento, ao longo de um século, o vinte, dominado por vanguardas, por “ismos” e pela obsessão com as inovações. Até que… Até que Joaquín Sorolla e Bastida voltou a ser posto no seu devido lugar.
O nosso artista dificilmente pode ser considerado um verdadeiro impressionista, desta feita espanhol, porque, por exemplo, não explorou a técnica das pequenas pinceladas de cores diferentes obtendo-se do conjunto o tom desejado. A luz das suas telas vibra por outros meios, como as cintilações na água ou os contrastes das sombras com zonas fortemente iluminadas. Sobretudo, os grandes impressionistas franceses (Monet, Pissarro, Utrillo, Sisley, Renoir), trataram a luz como manto fátuo que cobre e une o conjunto, não como responsável por contrastes entre zonas iluminadas e escuras.

E preocuparam-se com as mudanças produzidas na relação entre a luz e a matéria, com o movimento e alteração constante da aparência das coisas. No fundo, com a passagem do tempo.
A pintura de Sorolla tem mais solidez, representa coisas e pessoas que estão ali para ficar, mesmo se captadas num momento. É a solidez que, aliás, também Cézanne reivindicaria.
Mas claro que houve muitos temas comuns com os impressionistas, a pincelada rápida e fogosa está presente e a pintura ao ar livre também dominou a obra de Sorolla. Até o rei Afonso XIII, vestido com o uniforme de hussardo, foi retratado em pose de corpo inteiro, mas no jardim, com efeitos de luz a atravessar as árvores.

Sorolla era um amante de temas regionalistas, um soberbo luminista, e, fundamentalmente, um pintor realista. Quis representar a realidade com verosimilhança, sem se preocupar em reproduzi-la naturalisticamente ao pormenor.
Emparceira então com outros artistas notáveis da época como o russo Serov, o sueco Anders Zorn, outros nórdicos como Gallen-Akllela, ou Michael Ancher, para só citar alguns. E claro que também nos faz lembrar Whistler, Singer-Sargent, Boldini, Ramón Casas, Santiago Rusiñol ou Zuloaga que tantas afinidades têm com a sua obra. Tal como, convém dizê-lo, muita da nossa escola naturalista.
E, no entanto, até pareceu que o fim do século XIX se limitava a um academismo decadente dos “Salons”, incomodado pelas valorizadíssimas experiências impressionistas, as simbolistas e outras.

Sorolla viveu um sucesso internacional. Aos trinta anos era famoso, os prémios em exposições no estrangeiro foram mais que muitos – Munique, 1892, Paris e Chicago, 1893, Viena, 1894, Berlim, 1894, primeiro prémio de pintura da Exposição Universal de Paris de 1900, académico da Academia de S. Carlos, Cavaleiro da Legião de Honra francesa, etc. etc.
Não teve grandes problemas económicos, viveu numa mansão esplêndida, hoje o Museu Sorolla de Madrid. Tinha uma mulher que adorava e retratou dezenas de vezes, das mais variadas maneiras. Tal como os filhos Maria, Joaquim e Helena. Enfim, uma família convencional e aparentemente feliz. Estava, obviamente, muito bem integrado socialmente.
Figura, pois, nos antípodas do mito romântico do pintor incompreendido porque inovador, à frente do seu tempo, mas pobre, boémio ou marginal.

O que, já devia saber-se, não é indispensável para se ser um grande artista.

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Museo Sorolla de Madrid

5. Quem for a Madrid e visitar o Museu Sorolla, Calle General Martins Campos, ao pé da Castellana, não só pode apreciar parte importante da sua obra, como sobretudo entra no universo da privacidade, da respetiva vida doméstica e do local de trabalho, porque ele fez lá o atelier. A casa foi doada pela mulher ao Estado espanhol e manteve-se muito do recheio.
Pois a exposição que se pode visitar agora no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) resulta de uma feliz parceria com o Museu Sorolla e, com uma ou duas exceções, são de lá todas as obras expostas.

A exposição “Terra adentro” centra-se sobretudo nas paisagens interiores da Espanha de então, desde a fronteira com França até defronte a Marrocos. Por isso é que se mostra extremamente interessante, ao revelar-nos um Sorolla que não é só o da alegria das praias de Valência e da luz intensa mediterrânica. Também, de alguém que se revela sensível à austeridade da ruralidade do interior, da pobreza de uma Espanha triste, definitivamente despojada de todas as colónias que haviam feito a sua grandeza.
Fica-nos, no fim, a imagem de um país verde no Norte, montanhoso e terroso no centro, claro no sul. Sempre, porém, sem pretensões de impressionar através de uma grandiosidade artificial, e sim, reduzida, à humilde realidade do que era mesmo.

A exposição “Terra adentro” centra-se sobretudo nas paisagens interiores da Espanha de então, desde a fronteira com França até defronte a Marrocos

A nossa viagem, na exposição, começa com uma espécie de introdução, «Mitologia regionalista e natureza» em que se acentua o regionalismo e o realismo, na paisagem pintada por Sorolla, do campo, mas também citadina. Ilustram o tema trechos captados em Valência e arredores.
Num segundo lote de pinturas, “A Espanha de Sorolla. Consolidação da sua fórmula luminista”, é tratado o luminismo do artista, mas com temas que não são de beira-mar. Luz forte em muros brancos ou calcinando terrenos secos.
A terceira secção de telas já nos leva para o norte, porque sob o tema “Os verdes e os cinzentos de Sorolla: a colónia de Muros de Pravia e a paisagem do país basco”, o que realmente domina é a verdura das Asturias e da Guipúzcoa.  Erva verde, muitos prados. Também se vê lá água, mas escura, sugerindo fundos do rio ameaçadores (“El Nalón”).

Aparece depois uma Castela dominada por paisagens pedregosas, duras, agrestes. Há muitos ocres e montes com cimos nevados. Segóvia, Burgos, La Mota, Ávila ou Toledo estão bem representados, e o conjunto agrupa-se sob o tema “A invenção de Castela como emblema nacional: paisagem natural e paisagem monumental”.
A “Espanha branca de Joaquín Sorolla” leva-nos para a Andaluzia, onde se vêm os vinhedos de Jerez, outras paisagens, e onde, sobretudo, pontifica Granada. Sacramonte, Alhambra, Generalife, Granada propriamente dita.
“Mar de luz” não resiste à tentação de mostrar a paisagem de costa, do Levante espanhol, vista pelo nosso pintor, se bem que haja também uma vista do mar das Astúrias. Notável, entre outras, a tela intitulada “Bois no mar”, das poucas que não veio do Museu Sorolla. Malvarrosa, Jávea e Valência são os sítios onde tudo se passa.

Finalmente, e completando esta panorâmica, vieram do Museu Sorolla, ainda, telas com os tipos etnográficos das regiões de Espanha que serviram para os painéis da “Hispanic Society”, já trás referidos. É o grupo que, à direita para quem entra nesta zona do MNAA, foi instalado numa sala separada, sob o tema “Etnografia da Espanha rural, pintura e nacionalismo”. A mesma mestria, agora com uma clara preocupação documental.
Já se puderam ver, no MNAA, ótimos Sorollas, integrados na mostra da colecção Mazaveu (2015-2016). Antes, em 2000, coube à Fundação D. Luís I, em Cascais, presentear-nos com outra excelente panorâmica da obra do mestre, à custa, também, do acervo do Museu Sorolla. E já em 1989 a Fundação Calouste Gulbenkian nos proporcionava o contacto como o pintor, ao exibir a colecção do Banco Hispano-Americano. Pois agora, Sorolla volta a Lisboa, e numa feição que não repete o já visto cá, antes.

Obviamente, a não perder.

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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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