Nos últimos tempos, temos assistido ao retorno de algumas ideologias carregadas com a marca do radicalismo, com visões gravemente distorcidas da sociedade e da humanidade: estereótipos, ostracizações, racismo, xenofobia. Vivemos num tempo, marcado pelo esquecimento da nossa história e das nossas origens, em que muitos parecem já não recordar as consequências da divisão e da guerra. Nesses tempos e nestes, tendemos a esquecer (ou a não querer lembrar) o impacto que as decisões políticas têm, especialmente nos mais pobres e marginalizados. Tendemos a reduzi-los a números e estatísticas, registos de mortos e de sobreviventes, refugiados ou de sem-abrigo: com demasiada facilidade esquecemos os rostos, histórias e vidas humanas por detrás desses números.
Nenhum destes problemas é novo. Talvez nem sequer haja solução para qualquer um deles. Mas nunca deixando de nos indignar com a injustiça que eles constituem, talvez nos devamos deixar interpelar pelo permanente desafio à auto-superação que constituem. Talvez sejam prova às nossas convicções e à nossa fidelidade a elas, independentemente da nossa condição, cultura ou fé.
Nenhum destes problemas é novo. Talvez nem sequer haja solução para qualquer um deles. Mas nunca deixando de nos indignar com a injustiça que eles constituem, talvez nos devamos deixar interpelar pelo permanente desafio à auto-superação que constituem.
Capharnaüm, filme libanês que está a surpreender o mundo, pela sua crueza, pelo modo como envolve e interpela o espectador, não permite um olhar indiferente. Nadine Labaki, a argumentista e realizadora desta película, desafia o mundo ao contacto com a realidade de uma cidade paupérrima, sem grandes condições, acompanhando o relato de Zain, um jovem com “cerca de doze anos”, numa audiência em tribunal, com o intuito de processar os seus pais por ter nascido. Colocada nestes termos, a queixa de Zain parece não ter razão de ser, podendo parecer apenas o fruto de uma crise existencial de um pré-adolescente. E talvez pudesse ser, se o filme fosse outro. Contudo, no contexto socio-cultural em que a história se desenrola, e com o desenvolvimento da trama, por entre vários ‘desacomodamentos’, o espectador verá questionadas as suas próprias convicções, podendo mesmo inquirir de si mesmo “Quem seria eu se tivesse nascido ali?”.
https://www.youtube.com/watch?v=gpVJP8xXmCk
Labaki, profundamente tocada por incontáveis crianças afectadas pelos conflitos armados no médio oriente, redige um argumento que, não sendo baseado em factos verídicos, carrega consigo bem mais do que aquilo que o mundo ocidental vê (ou quer ver). E se não bastasse a complexa simplicidade desta trama, a opção por actores maioritariamente amadores confere-lhe uma vitalidade que, doutra forma, talvez não fosse possível. De forma muito particular, é inegável o grande contributo de Zain Al Rafeea, o jovem actor principal deste tão ovacionado filme, que empresta o nome à personagem e que é, ele mesmo, um refugiado sírio forçado ao exilio do seu país com apenas quatro anos. Mais, além de todo o ambiente em que o filme é gravado, que nos transmite uma noção de caos e desordem, são os olhares, as expressões faciais, a permanente postura corporal, ora curvada, ora prostrada, que lhe conferem a textura dura destas vidas.
Em Zain, único rapaz entre os inúmeros filhos de Souad e Selim, é-nos apresentado um jovem com “cerca de doze anos”, forçado a trabalhar e impedido de estudar, numa promíscua mescla de necessidades e trocas de favores que permitem à sua família sua permanência numa casa sem condições, numa quase indescritível pobreza. Zeloso e cuidador, o personagem é, desde logo, apresentado como uma criança atenta ao que a rodeia, questionando inclusive as decisões imorais dos seus próprios pais. Neste ambiente, acende-se o rastilho que desencadeia toda a história, quando Zain assiste ao consentimento e casamento forçados de sua irmã, acabada de chegar à puberdade, como permuta pela sua subsistência. Impotente perante a situação, o espectador assiste à fuga de Zain, abandonando a família, acabando por ser acolhido por uma refugiada etíope Rahil, forçada, também ela, a esconder o seu filho, ainda criança de colo, procurando protegê-lo de um esquema de tráfico humano.
“Capharnaüm” gera no espectador o incómodo do choque com a dureza destas vidas, despertando um sentimento de indignação com as situações a que tantos (especialmente as crianças) são sujeitos, sem culpa alguma
Entre as diversas reviravoltas do argumento, o espectador compreende que Zain, com apenas doze anos, está preso por ter vingado a morte da irmã, que recentemente havia morrido na sequência de uma gravidez excessivamente precoce e pela recusa do hospital em prestar assistência médica a cidadãos inexistentes, por ausência de documentação. Na sequência de todos estes eventos, o protagonista deseja processar os seus progenitores por o terem trazido ao mundo, bem como impedi-los de conceber mais filhos que não seriam senão vítimas do sistema e da situação familiar.
“Capharnaüm” gera no espectador o incómodo do choque com a dureza destas vidas, despertando um sentimento de indignação com as situações a que tantos (especialmente as crianças) são sujeitos, sem culpa alguma: guerra, exílio forçado, vida de fuga, ilegal permanência num país desconhecido, fome e pobreza, trabalho e exploração infantil, pedofilia, tráfico humano. Num discurso desesperado, os pais de Zain defendem-se com argumentos aparentemente inaceitáveis, mas que nos interpelam: recordam que eles próprios foram vítimas da cultura em que nasceram, com todas as suas durezas, forçados a entrar no ciclo do compromisso matrimonial e da procriação para propagar a descendência, impossibilitados de progredir na vida por um contexto social, económico e de conflito. Como tal, os seus filhos serão necessariamente herdeiros desta realidade, assim como eles o foram, tendo como única opção a resignação e a aceitação dessa verdade.
Um dos temas principais da banda sonora do filme, associado ao protagonista, apresenta uma melodia melancólica, quase num ostinato melódico, numa repetição que nos transmite a ideia de uma sensação de ciclo. Pelos nossos sentidos, também a música, nesta aparente prisão cíclica, nos coloca incessantemente a mesma questão: “se és fruto do lugar onde nasceste, poderás fugir disso? Poderás não ser quem és?”
https://www.youtube.com/watch?v=RERHWfWaKgI
Mais do que o incómodo com a injustiça social, a história de Zain deixa-nos uma questão: que faria cada um de nós se estivesse no seu lugar? Neste exercício quase inaciano de uma forçosa “composição vendo o lugar”, que faria cada um de nós no lugar do jovem Zain que vê sua irmã ser vendida, que se vê forçado a tomar conta de uma criança após o desaparecimento de sua mãe, que reage ao impulso e esfaqueia aquele que considera culpado pela morte da sua irmã? Ou que faria cada um de nós no lugar da refugiada Rahil, forçada a esconder o filho para o não perder? Ou que faria no lugar injusto em que a mãe Souad se vê, ao não ter solução se não dar a sua própria filha? Ou que faria no lugar do pai Salim que se considera invisível aos olhos da sociedade, do mundo e do próprio Deus, sem papeis, sem identidade, num país estrangeiro, num mundo caótico?
“Capharnaüm”, mais do que a um olhar contemplativo, desafia-nos a entrar numa realidade que, não sendo a nossa, tendemos a olhar à distância, como se fosse fictícia.
“Capharnaüm”, mais do que a um olhar contemplativo, desafia-nos a entrar numa realidade que, não sendo a nossa, tendemos a olhar à distância, como se fosse fictícia. O próprio título remete para a etimologia da palavra, mais conotada com a ideia de caos, de “confusa confusão”: ajuda-nos, assim, a focar olhar num ambiente onde rostos concretos, histórias concretas, vidas concretas estão acumuladas e esquecidas, à semelhança do lixo e dos desperdícios que os rodeiam. Contemplando o não-lugar das crianças forçadas a crescer neste contexto, é inevitável que o espectador se questione se poderia ser doutro modo e se, mais do que isso, será verdadeiramente possível rasgar este ciclo interminável que, aparentemente, condena tantos, sem culpa alguma, desde o nascimento.
Galardoado com o Prémio do Júri no Festival de Canes, nomeado e premiado por tantos outros, e agora igualmente nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, esta imprevisível obra de Nadine Labaki questiona o mundo, interroga as acções das grandes potências e põe-nos em contacto com os últimos dos últimos, com os mais pequeninos dos pequeninos, os que verdadeiramente vivem nas periferias, deixando-nos uma dúvida na consciência: “E se fosses tu? Podias ser tu!”.
Em exibição:
Lisboa: Cinema City Alvalade I UCI Cinemas I Cinema Ideal
Porto: Cinema Trindade I UCI Arrábida 20
FICHA TÉCNICA
(T.O.) Capharnaüm (کفرناحوم) – Líbano, 2018
Estreia em Portugal: 19.Fevereiro.2019
2h30 minutos – M/12
Realização: Nadine Labaki
Drama
Música: Khaled Mouzanar
Argumento: Nadine Labaki
Produção: Michel Merkt, Khaled Mouzanar
Actores Principais: Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw, Boluwatife Treasure Bankole, Kawthar Al Haddad, Fadi Kamel Youssef, Nour el Husseini.
Prémios: Prémio do Júri (Festival de Cannes) entre outros; Nomeado para Óscar 2019 de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
Conheça melhor a Brotéria