A exposição temporária, que está patente no Museu Nacional de Soares dos Reis até junho, é organizada pelo próprio museu em parceria com O Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende e pretende enfatizar a relação estreita e íntima da obra do pintor portuense com a palavra escrita.
Na verdade, pode considerar-se que esta mostra se desdobra em duas: numa, o espectador é convidado a olhar para a pintura de Resende através das palavras de escritores seus amigos ( Eugénio de Andrade, Vasco Graça Moura, Mário Cláudio, Vergílio Ferreira, José Carlos Vasconcelos e Viale Moutinho); na outra, de certa maneira, propõe-se o caminho inverso: através do traço, do desenho e da pintura de Resende, tem-se acesso à interpretação do pintor de textos de diferentes naturezas e autores (literatura infantil, como a de Sophia de Mello Breyner Andersen e de Ilse Losa; poesia de Mário Cláudio, José Régio e Rilke; obras, entre outros, de Fernando Namora e Eça de Queirós; e ainda capas de livros, ilustrações para revistas científicas e literárias, ilustrações para manuais escolares e registos da incursão do artista no mundo dramático, com a criação de cenários e figurinos para diversas peças de teatro).
Uma pintura (ou qualquer obra de arte) é sempre um diálogo em construção. Um diálogo em que participam o artista que a realizou e cada pessoa que observa e aprecia a obra. Logo, uma pintura acumula sempre muitas histórias. A que o autor conta e todas as que são acrescentadas por quem se deixa impressionar pela obra, por quem pára e lhe concede um tempo de observação e interação. A fixação de uma pintura no seu suporte não determina a sua finalização. É preciso acrescentar-lhe todas as emoções, todas as reflexões, todas as impressões, interrogações, pasmos, controvérsias, espantos, empatias, antipatias e simpatias que suscita. Cada pintura (ou cada obra de arte) carrega assim um património artístico, cultural e afetivo composto pelo muito que o seu criador lhe deu, por todas as informações, reflexões e ensaios que origina e pela leitura de qualquer espectador individual e anónimo.
Toda a arte é um grito. Ou um choro. Ou um gemido, um sonho, uma paixão, uma tragédia, uma constatação, uma luta, um anseio, uma dança, enfim, toda a realidade que nos cerca e nos habita. Toda a arte é palavra, nunca calada, nunca escondida. E os escritores, acredito, são igualmente habitados por uma necessidade visceral de verdade, por um desejo de liberdade que só a sua “arte” lhes possibilita alcançar, por uma imposição inflexível para questionar e procurar, por uma urgência sempre vibrante, presente até na obra acabada. Deste ponto de vista, esta exposição, ao facilitar o acesso ao que alguns escritores escreveram sobre a obra de Júlio Resende, é de uma enorme generosidade. Eis que é dada a possibilidade ao visitante de ler as pinturas de Resende através das palavras de quem maneja a pena com a mesma mestria com que um grande pintor usa o pincel para misturar as cores e construir as composições.
Uma pintura (ou qualquer obra de arte) é sempre um diálogo em construção. Um diálogo em que participam o artista que a realizou e cada pessoa que observa e aprecia a obra. Logo, uma pintura acumula sempre muitas histórias.
Nesta exposição, os escritores juntam as suas vozes à voz de Resende. As suas palavas, são fios condutores. Tudo o que já se sabe sobre o autor e o seu legado está lá, não desapareceu. A novidade é o acesso às reflexões, às impressões, às comprovações, às lições, à sensibilidade e à poesia dos textos resultantes da observação, análise e gozo da obra exposta. A possibilidade de juntar novos olhares e novas leituras. As pinturas e desenhos exibidos resumem as fases e temáticas no percurso artístico de Júlio Resende. O itinerário expositivo, assinalado por trechos e poemas, destaca pontos essenciais para a leitura global de um percurso de evolução progressiva que nunca estagnou (as diferentes paletas; o carácter construtivista; a sedução da abstração; a importância da figura humana; a exploração do expressionismo lírico; a construção sintética, ritmada, compassada de muitas composições).
Do “outro lado” da exposição, são apresentados exemplos da reação/resposta pictórica e gráfica de Resende à palavra escrita. Antes de se entrar a fundo na temática, percebemos como o desenho e a ilustração são indissociáveis da sua personalidade. Os primeiros jornais ilustrados que ele próprio produziu datam dos anos 20, e nas décadas de 30 a 50 foi colaborador regular (com desenhos de natureza humorística) de diversas publicações infantis e de periódicos como o Primeiro de Janeiro e o Jornal de Notícias.
Esta ligação à palavra nunca desapareceu (revelador dessa relação intensa é o desenho a lápis, Mesa de Atelier, de 1990, logo à entrada da exposição). AléMuseu Nac da criação de inúmeras capas de livros e da criação de cenários e figurinos para peças de teatro, ilustrou obra literária, na qual se deve destacar a ilustração para Aparição, de Vergílio Ferreira (1.º prémio de Artes Gráficas na Bienal de São Paulo) e Retalhos da Vida de um Médico, de Fernando Namora. Além disso, foi um prolífico ilustrador de literatura infantil, oferecendo ao leitor infantil (e adulto, diga-se) ilustrações de uma enorme beleza e poesia que não só terão ajudado e enriquecido a própria leitura dos jovens, como contribuíram para a evolução da arte da ilustração literária em Portugal.
É então que a sua pintura deixa de falar e começa a cantar.
De alguma forma, neste lado da exposição, assiste-se a uma alternância de papéis. Antes, vimos como a obra de Resende deu origem a interpretações, a leituras várias; neste lado da exposição, quem “reage” é Resende. Quando cria ilustrações, quando compõe uma capa, está a interpretar o que o texto lhe sugere, o que o contexto geral da obra lhe dita, o que mais o impressiona, o tom dominante da história. Não deixa de ser um autor, o criador das composições – tal como não deixam de ser autores e criadores os escritores que escrevem a partir das suas pinturas – mas parte de uma realidade que não é sua, de uma sensibilidade alheia para se fundir com o escritor. Nesta fusão, o desafio é ser capaz de ser fiel ao texto do escritor sem abdicar da sua própria individualidade.
A exposição não é grande, mas seguindo atentamente os dois percursos sugeridos, nem dei conta de o tempo passar. Muito mais importante, porém, é que esta exposição testemunha, inequivocamente, o enorme lirismo que atravessa toda a obra de Resende. Negro e sombrio em algumas fases, luminoso e delicado noutras, mas sempre poético e transcendente. Como, aliás, sabiamente notou Eugénio de Andrade quando escreveu, a propósito de uma exposição do mestre portuense: “É então que a sua pintura deixa de falar e começa a cantar”.
Fotografias cedidas pelo Museu Nacional Soares dos Reis
Informações úteis
Localização
Palácio dos Carrancas – Rua D. Manuel II – 4050 – 342 Porto (Mapa Google)
Coordenadas GPS: 41.147709, -8.621550
Contactos
Telefone + 351 223 393 770
E-mail: [email protected]
Horário
Terça a Domingo das 10h00 às 18h00
Encerrado à segunda-Feira, 1 de janeiro, domingo de Páscoa, 1 de maio, 24 de junho e 25 de dezembro
Bilheteira
Bilhete normal – 5,00€
Próxima visita guiada
Dia 15 de maio às 18h
Marcações: 22 33 93 770
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
Conheça melhor a Brotéria