Não há dúvida que Joana Vasconcelos é uma artista popular. Duplamente. É popular porque é apreciada pela grande maioria do público português e é popular porque é Pop a linguagem plástica e a temática da sua obra. Conhecida dentro e fora de Portugal detém já alguns recordes lisonjeiros: foi a primeira artista portuguesa a ter uma exposição individual no museu Guggenheim de Bilbau (2018) e foi a primeira mulher convidada a expor no Palácio de Versailles (2012), além de ter representado Portugal na Bienal de Veneza de 2013. As suas exposições costumam ser um sucesso contabilizado em elevado número de visitas. Assim foi em Bilbau, onde a mostra que agora se aloja em Serralves recebeu 640 mil visitantes.
Expõem-se no Museu de Arte Contemporânea, nos seus jardins e na avenida Marechal Gomes da Costa 35 obras da autora, 14 das quais inéditas. A mais antiga é o Sofá Aspirina (a que se juntou a Cama Valium no ano seguinte, peças de mobiliário “anestésicas”… potencialmente letais – em teoria, claro) e as mais recentes chamam-se Solitário e I’ll be your mirror. Esta última, uma máscara veneziana que inspira o nome da exposição, é uma enorme estrutura composta por centenas de espelhos de dupla face, de modo que quer estejamos de frente para ela, ou dentro dela, somos sempre confrontados com a nossa própria imagem. Solitaire, como o próprio nome indica, é um gigantesco anel solitário (7 metros e 2,5 toneladas) feito com mais de cem jantes de liga leve e mais de mil copos de whisky de cristal. Para além destas obras, apresenta-se uma seleção que cobre 21 anos da criação plástica da artista e que inclui as famosas obras Marilyn (sapatos de tachos), Noiva (lustre de tampões), Coração Independente Vermelho (coração de viana de talheres de plástico) e, entre outras, peças de Bordalo revestidas a crochet e obras da série Pinturas em Croché.
A inspiração da artista vem claramente do quotidiano e do tempo presente que habita, e a maioria das suas criações é prontamente identificável, o que permite uma interpretação (ou uma fruição) imediata. Cada obra é facilmente reconhecível.
Qualquer obra de arte, para o ser, deve possuir uma qualidade intemporal alicerçada numa visão inovadora e numa mensagem que ultrapasse o tempo e a época em que foi criada. Qualquer obra de arte, para o ser, deve permitir uma riqueza interpretativa que não se esgota numa leitura única. Muitas das obras patentes possuem um carácter irónico ou um dualismo interessante. Não deixa de ser irónico que Noiva represente um candelabro (daqueles antigos e exuberantes, feitos de cristal, cheios de brilhos e cintilações, o que remete logo para bailes e recepções, eventos públicos e ostensivos) feito com milhares de tampões OB (imediatamente conectado como exclusivo da feminilidade, de natureza privada e íntima). Também não escapa a ninguém o dualismo da imagem do sapato de salto alto elegante e requintado, próprio de uma Marilyn (é esse o nome da peça) sensual e inatingível, feito de tachos e testos, provavelmente os objetos que menos se associam à diva de Holywood. Do mesmo modo, a obra Call Center, uma enorme pistola (difícil de se perceber, dada a exiguidade do espaço onde está montada) composta por 168 telefones fixos imediatamente nos recorda a importância da comunicação e também, o seu poder destrutivo (na época presente, uma ironia totalmente na ordem do dia). E quem não sente a violência denunciada na instalação Burka, cujo barulho seco causado pela queda de um corpo coberto de tecidos causa sempre um arrepio desagradável?
A artista tem Portugal na obra, diz-se. Através das temáticas (o galo de Barcelos, a filigrana de Viana do Castelo, as Nossas Senhoras de Fátima, etc) e dos materiais (as cerâmicas, o ferro forjado, o crochet), inspirou-se na realidade portuguesa para a elaboração de muitas das obras e, com isso, tornou-se embaixadora da cultura nacional. Sempre de um modo irónico, ou ousado, ou provocatório. E não se preocupou (pelo contrário) com a natureza tradicional e doméstica dos materiais. Como ela própria afirma, abriu a gaveta da intimidade de casa e deu valor ao que de lá tirou: os crochets, as rendas, os collants, as gravatas, os bibelots e utensílios de uso doméstico como vassouras e garrafas, elevando todos esses objectos ao estatuto de arte. Um pouco à maneira de Duchamp, embora, ao contrário deste, procure dar aos objectos assim descontextualizados uma nova dimensão.
Há temáticas que são recorrentes no seu percurso, dando origem a séries (as “Caixas”, as “Pinturas em croché”, os “Lavatórios”, as “Valquírias”, os “Sapatos”, os “Urinóis”, os “Cães”, etc), explorando e alimentando as suas possibilidades plásticas. O mesmo se passa com alguns materiais. Por exemplo, com os trabalhos com renda e crochet, que começaram por cobrir (= proteger) objectos como televisores, pianos e bibelots, para depois fecharem urinóis (de novo Duchamp), a seguir “taparem” pessoas e manequins, cães em faiança e “aprisionarem” uma seleção de animais saídos da pena de Bordalo Pinheiro.
A inspiração da artista vem claramente do quotidiano e do tempo presente que habita, e a maioria das suas criações é prontamente identificável, o que permite uma interpretação (ou uma fruição) imediata. Cada obra é facilmente reconhecível. Admira-se a escala, as cores, os materiais, a criatividade, a concepção e a engenharia da construção (notável em muitas obras, é preciso dizer-se). Não há dúvida que a cor atrai, a dimensão atrai, o barroquismo atrai, o excesso atrai, a autoconfiança e ousadia da artista atraem e marcam pontos junto da opinião publica. E, na verdade, não tem de ser sempre tudo a preto e branco, alinhado e à escala humana e controlada (muito embora, na dúvida, a velha máxima less is more seja sempre de se considerar).
Goste-se ou não, é evidente a sua capacidade de promoção e de concretização, sobretudo no que se refere a obras de orçamento elevado e execução complexa. Possui um espaço (3000 m2) privilegiado em Lisboa, junto ao Tejo, e uma equipa com mais de 50 pessoas que ali trabalham a tempo inteiro. A estrutura do atelier compreende oficinas várias (carpintaria, têxteis, restauro, etc), ateliers de engenharia e arquitectura, gabinetes financeiro e de comunicação, biblioteca e arquivo. É representada por galerias europeias, americanas e asiáticas e tem já agendadas exposições individuais em Portugal, Holanda e Alemanha.
Em Serralves, os dois anteriores diretores (Suzanne Cotter e João Ribas) nunca assumiram a programação desta mostra, mas o que é um facto é que aconteceu. Joana Vasconcelos expõe no mais importante espaço museológico do Norte do país. Até dia 24 de junho, data da festa popular por excelência.
Todas as fotografias: © LV – Fundação/Museu de Serralves.
Joana Vasconcelos – I’m your mirror
até 24 de junho
Museu de Serralves (Mapa Google)
R. Dom João de Castro 210, 4150-417 Porto
Contactos
Informações:+351 808 200 543 (custo de uma chamada local)
Geral Telefone: +351 226 156 500
Marcação de Visitas Orientadas: +351 226 156 546
Horário:
Até final de março:
2ª a 6ª – 10 a 18h I fim de semana e feriados: 10 – 19h
A partir de abril
2ª a 6ª – 10 a 19h I fim de semana e feriados: 10 – 20h
Preçário
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Próximas atividades relacionadas com exposição
23 MAR (SÁB), 17H00 | Um Olhar Para a Arte Contemporânea
com Joana Vasconcelos, artista, Petra Joos, curadora no Guggenheim Bilbao e Isabel Pires de Lima, professora catedrática
31 MAR (DOM), 12H00 | Visita Orientada à exposição
por Rita Faustino
28 ABR (DOM), 12H00 | Visita Orientada à exposição
por José Costa
10 MAI (SEX), 18H30 | Conversa com a Artista
Conversa sobre “A Máscara na Arte” com Joana Vasconcelos, artista, e Alain Grouette, terapeuta e naturopata
Contactos: [email protected] I +351 226 156 500
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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