A minha memória e a minha vida são povoadas por rostos e vidas de religiosos. Cresci rodeada por eles. [Lembro-me, muitas vezes, com carinho, da tentativa de, com as minhas colegas de Colégio, perceber como é que aqueles alfinetes prendiam os véus das irmãs às suas cabeças sem que saísse sangue… Elas deviam ser mesmo especiais! – era a nossa conclusão de crianças que, com elas, aprendíamos e brincávamos. Cantávamos e dançávamos.] Aprendi, ainda criança, a amá-los e a aceitar uma forma de viver que, em tempos, me pareceu tanto absurda como apetecível.
Crescendo, conheci muitos outros. Quer pessoalmente, quer por notícias ou histórias– a Madre Teresa de Calcutá, Francisco de Assis, Inácio de Loyola, os missionários em África, na China e em Timor. Os que vivem aqui perto de mim e outros com quem me fui cruzando nas mais diversas situações. Rostos e olhos iluminados e rostos e olhos sombrios. Corações humildes e corações sobranceiros. Palavras com sabor a oração e palavras vãs. Olhares de esperança e olhares duros. Mãos abertas aos outros e mãos presas a algo. Vidas como fogo e vidas frias. Homens e mulheres, afinal!
Em tantos, vejo um desejo de viver para os outros. Entregando-se. Cuidando. Com mais ou menos jeito. Com melhor ou pior feitio. Procurando estar e ser luz, também quando tudo o resto parece faltar. Não como uma luz própria, mas uma luz que é reflexo de Jesus. Ajudando a ler a realidade que, tantas vezes, sem companhia, assusta. Tornando-se próximos, sem medo de se sujar. Colocando a periferia no centro. (Con)Vivendo com os paralíticos, as prostitutas, os cegos e os leprosos de hoje. Numa vida que se faz de oração. E que se faz oração. Numa vida que sabe que o seu lugar é a pessoa de Jesus. E que a Ele pode e deve sempre voltar. Entregando-Lhe fragilidades e limitações. Voltando ao lugar original. Aquele em que somos criados por Deus. Por amor e para amar. E nota-se, claramente, quando, pelo contrário, alguém diz, constantemente, a Deus: ‘afasta-Te! Eu faço sozinho!’.
Interpela-me vê-los aceitar dar vida e gesto às palavras pobreza, obediência e castidade. Em momentos tão concretos. Nem sempre acertando.
Interpela-me vê-los arriscar novas possibilidades. Novos começos. Mesmo não tendo garantias. Numa constante fidelidade à sua tradição, ao seu carisma, que se traduz, também, na abertura ao novo. Criando comunidades em lugares inóspitos e imprevisíveis e, por isso, necessitados. Cuidando de espaços que se abrem à ciência e à cultura. Cuidando da Palavra e procurando novas formas de a dar a conhecer, num constante diálogo entre a aparente banalidade do quotidiano e a Palavra de Deus. Cuidando dos doentes. Acolhendo os que têm de fugir das suas terras. Vivendo com os que são abandonados. Dando à luz espaços de reflexão e diálogo sobre a realidade. Saindo dos lugares importantes e solenes. Voltando aos lugares onde foram chamados. Aqueles em que deixavam que a iniciativa fosse do Senhor. Partindo ao encontro de todos os lugares humanos. De uma forma não arrogante, não violenta na maneira de falar ou debater, mas como conhecedores da nossa religião, com consciência do lugar que nos pertence, sabendo aquilo que queremos defender e o que não queremos, conhecendo tão bem, com inteligência e afecto, aquilo em que acreditamos que disso possam dar razão, com conhecimento da nossa história. Deixando-se espantar a cada momento. Vivendo de forma apaixonada. Daí sentir falta de ver esta vida a acontecer num modo mais constante e habitual. Num reconhecimento de que os tempos mudam e que é necessário saber inserir-se nos novos cenários. Como que esquecendo a promessa da Terra Prometida que é futuro e não passado e, por isso, anunciando uma vida morna que não atrai nem faz nascer vida.
Interpela-me vê-los aceitar dar vida e gesto às palavras pobreza, obediência e castidade. Em momentos tão concretos. Nem sempre acertando. Em comunidade. Com tantos com os quais, à partida, não escolheriam estar. Mas que estão, porque o Senhor a isso os chama. Fazendo caminho juntos. Dando passos em frente e passos atrás.Ao lado e atrás de Jesus. Em Jesus. Tornando-se realmente companheiros. Deixando que a vida seja transformada. Dando a toda a realidade uma nova perspectiva. Deixando que a comunhão com Jesus signifique tornarem-se como Ele. O serviço. A cruz. O sepulcro. A ressurreição.
Partindo ao encontro dos outros. Amando sem razão. Só porque sim. Com um bilhetinho ao peito, junto ao coração: “Tomai… fazei isto em minha memória”, até ao fim! E isso basta!
PS – A autora segue o antigo acordo ortográfico.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.