Depois de uma primeira etapa de conversão, a que chamamos “os santos fazem-se à força de vontade” (dia 11 julho) que veio a ser acompanhada por “uma crise inesperada” (18 julho), é o momento de olharmos para os efeitos transformadores na vida de santo Inácio, aguardando que alguma luz daqui se possa trazer no processo das nossas demoradas conversões.
Sendo certo que se tratam de etapas de um caminho progressivo, isto não invalida que permaneça a noção de que a conversão seja obra incompleta, inacabada e sem fim.
Não deixa de ser relevante que no dia 30 de janeiro de 1551, poucos anos antes da sua morte, numa carta dirigida aos companheiros de Jesus congregados em Roma, Inácio de Loyola já com vida adiantada, manifestará a sua vontade em renunciar ao cargo de governo geral da Companhia de Jesus. E as razões revelam uma desconcertante lucidez: “os meus muitos pecados, muitas imperfeições e muitas enfermidades tantos interiores como exteriores”.
Avizinhando-se o período final da sua vida, podemos testemunhar que o percurso de transformação parece não ter atingido o seu termo. Mas, qual é então o termo e a finalidade de todo este processo de conversão e de transformação? Será que podemos aspirar ao dia em que nos livraremos das nossas “muitas imperfeições” e “muitas enfermidades tanto interiores como exteriores”?
São Paulo também nos recordou, quando ao escrever à comunidade de Corinto, lembrava que trazia consigo um “espinho na carne” (2 Cor.12, 8) do qual não se livrou e que o Senhor lhe garantiu: “basta-te a minha graça”.
Ora, que graça é esta que nos está reservada e que não se importa de coabitar com a nossa fraqueza e a nossa miséria?
Ora, que graça é esta que nos está reservada e que não se importa de coabitar com a nossa fraqueza e a nossa miséria? Santo Inácio, não como resultado de um esforço ascético e de uma força vontade inigualável mas, antes pelo contrário, no decorrer de uma exercício de enorme passividade ocorrido em Manresa, junto ao rio Cardonner, dá-se conta que se lhe abriam os olhos do entendimento:
“Uma vez, ia, por sua devoção, a uma igreja que estava a pouco mais de uma milha de Manresa, que creio eu que se chama S. Paulo, e o caminho vai junto ao rio. E indo assim nas suas devoções, sentou-se um pouco, virado para o rio que corria fundo. E estando ali sentado, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento; e não que visse alguma visão, senão entendendo e conhecendo muitas coisas, tanto de coisas espirituais, como de coisas da fé e das letras. E isto com uma ilustração tão grande, que todas as coisas lhe pareciam novas” (Autobiografia 30).
Esta experiência de natureza estética e mística, de ilustração tão grande, revelou-se-lhe como inovadora na compreensão da história da sua relação com Deus. A vida já não estaria fundada numa vontade capaz de extraviar de si toda e qualquer imperfeição conquistando e justificando o amor de Deus, mas no viver a partir de uma entrega radical: deixar que seja Deus quem conduza a sua vida, mesmo que ele (santo Inácio) não tenha de antemão a garantia do seu futuro nem a antevisão da sua santidade.
Não se trata de adivinhar o futuro, nem de clarificar a garantia, nem sequer de destrinçar o enredo dos sinais, mas de viver “sabiamente ignorante” nas mãos de Outro.
Começa por entender que a vida sendo misteriosa e o futuro impercetível seriam os lugares teológicos favoráveis para descobrir um olhar atento e respeitador da graça: o discernimento. Não se trata de adivinhar o futuro, nem de clarificar a garantia, nem sequer de destrinçar o enredo dos sinais, mas de viver “sabiamente ignorante” nas mãos de Outro.
Conversão seria para santo Inácio, abrir-se a um caminho completamente aberto e desconhecido de uma vida lida e interpretada ao sabor do Evangelho. Seria o Evangelho o tradutor de tanto mistério, a começar pelo mistério incompreensível de si próprio: o desejo, a tensão, a procura, a incerteza, a pergunta, o risco e a confiança. Conversão, mais do que mudar de vida, tratava-se de mudar de mentalidade, de transformar o olhar do coração.
Por isso, não sabendo para onde Deus o levava, não conhecendo o destino da sua vida, não percebendo as suas moções, aprendeu com custo que o sinal de estar no caminho certo não era a certeza do desengano. Não enganar-se não era a sua bússola. O grande sinal que Deus lhe quis dar como garantia do caminho certo, era o da alegria espiritual. Não a alegria de quem tem tudo arrumado, definitivo e pronto, não uma euforia descansada de quem já chegou e vive, agora, a partir de conclusões.
Trata-se de uma alegria nova: a alegria do Espírito, a alegria que vem de Cristo, a alegria de aceitar que há maior alegria em ser habitante num caminho, perguntando pela verdade e por onde passa dar a vida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.