Quando Sara ouviu que iria conceber um filho de Abraão deu uma gargalhada. Sara era estéril e ambos de idade avançada. É de rir. Só pode. No entanto, Sara concebeu de Abraão Isaac, que significa “ele ri”. O filho da promessa começa a vida com humor, já que os seus pais sentiram como se Deus estivesse a brincar com eles.
O humor faz parte da relação humana. Levar a vida com humor ajuda a relativizar alguns males, deixando que o riso contribua para clarificar ideias. Biologicamente, as hormonas como a endorfina e a dopamina são responsáveis pelo bem-estar. Se a adrenalina e o cortisol activam o stress, despertando as reacções de defesa, já as outras aliviam a tensão, aumentando a sensação de bem-estar. Quem não experimentou essa sensação depois de boas gargalhadas? Também por isso que, nos momentos mais tensos, parece que tudo faz rir. É o modo natural de aliviar a tensão. Se assim somos constituídos organicamente, então, Deus cria-nos também com e para o bem-estar e humor. O humor, o riso, a gargalhada fazem bem e recomendam-se. Mas, e se ofende? Também entra neste fazer bem o gozo, a sátira, a burla?
Em regimes de repressão, o humor também se tornou algo político. Foi-se abrindo e a sátira, o sarcasmo, o gozo tornaram-se armas para derrubar algo ou alguém. Ao ponto de provocar situações de morte, como por exemplo, há uns anos, com humoristas da Charlie Hebdo. Há umas semanas foi com ataques com “cocktails molotov” à sede da produtora da Porta dos Fundos. Quando soube disso, fui ver o especial de Natal que provocou a ira, a tal ponto de, além dos abaixo-assinados e ameaças de crime público, terem sido atirados os “cocktails molotov”.
No entanto, há algo que não posso esquecer: Deus cria o ser humano livre. Sabe que essa liberdade abre inclusivamente a possibilidade da negação e o desejo de morte do próprio Deus
Considero-me uma pessoa com humor e, na verdade, nem num momento tive vontade de rir durante o “especial de Natal”. Quando se conhece um pouco mais a fundo o sentido das Escrituras, da Religião, é preciso saber fazer humor com as mesmas. É possível, porque Deus de todo que não tem falta de humor, como vimos com o nascimento de Isaac. Do bom humor, porque o há mau. No entanto, há algo que não posso esquecer: Deus cria o ser humano livre. Sabe que essa liberdade abre inclusivamente a possibilidade da negação e o desejo de morte do próprio Deus. A negação pode revestir-se de muitas formas, como a idolatria, a blasfémia, o gozo, a sátira. O desejo da morte divina como [aparente] forma de emancipação.
Deus diante disto entristece-se, dói-lhe muito, porque Ele não é impassível diante do mal. No entanto, não é controlador, castigador, inquisidor, não censura. Exemplo bíblico do que acabo de escrever: o início da parábola do Filho Pródigo. O filho mais novo ao pedir a parte da herança é como se pedisse a morte do pai. E o pai, de certo com muita dor, dá-lhe. Significa que concorda com a acção do filho? Não. Mas, mesmo doendo muito, aceita a sua decisão, porque houve uma outra sua primeira: a da liberdade plena.
Há quem diga que há limites na liberdade. Que tudo não pode ser possível. Pois, mesmo que custe, sim, tudo é possível. Inclusive no humor. O humorista pode gozar de tudo e sobre tudo, até mesmo de Deus. Outra questão é a da conveniência. Aí, há que dizer, nem tudo convém. Perceber o sentido da conveniência implica maturidade, com a responsabilidade do que implica gozar ou satirizar. Também implica saber reconhecer e aceitar, para lá da reacção imediata, do que é que pode estar a ser dito que impeça o respeito. O humor, sendo de forma agressiva, pode desmascarar “telhados de vidro”. Então, deveria haver capacidade para, em exame de consciência, reconhecer as sombras do que surge e a cada uma levar luz, de forma adulta. E tal, por vezes, é com capacidade de boa gargalhada. Afinal, o riso aliado à fé pode revelar caminhos de fertilidade. Esperemos que sejam sempre de humanização.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.