Gravuras de Picasso em exibição no Porto

A exposição "Pablo Picasso. Suite Vollard." composta por 100 gravuras de Pablo Picasso está em exibição no Palácio das Artes, no Porto, até ao dia 11 de setembro. É esta a sugestão da Brotéria para esta semana.

A exposição "Pablo Picasso. Suite Vollard." composta por 100 gravuras de Pablo Picasso está em exibição no Palácio das Artes, no Porto, até ao dia 11 de setembro. É esta a sugestão da Brotéria para esta semana.

A Suite Vollard é uma coleção de cem gravuras, da autoria de Picasso, realizadas entre 1930 e 1937. O nome da coleção deve-se ao autor da encomenda: Ambroise Vollard, um dos principais marchands d’art de finais do século XIX e inícios do século XX, representante dos mais importantes artistas modernos, entre eles o próprio Picasso que por diversas vezes o retratou (inclusive nesta Suite).

Em exibição no Porto, no Palácio das Artes, a mostra segue uma organização proposta nos anos 50, dividida em cinco temas (“O Atelier do Escultor”; “A Batalha do Amor”; “Rembrandt”; “O Minotauro” e “O Minotauro Cego”) aos quais se juntam os 3 retratos de Ambroise Vollard e um conjunto de 27 gravuras agrupadas num “Tema Livre”.

Leyre Bozal Chamorro, da Fundación Mapfre (detentora desta série) e curadora da exposição, considera a Suite Vollard como o mais importante conjunto de gravuras concebidas pelo artista. De facto, a observação destes núcleos revela as muitas qualidades técnicas e artísticas de Picasso – a qualidade do desenho, a enorme capacidade de síntese gráfica, a utilização espantosa de diferentes perspetivas, a fragmentação e fraturação das composições, a utilização simultânea de diferentes técnicas de desenho, o domínio de várias linguagens plásticas, o jogo entre o uso das proporções clássicas e a desproporção. Porém, desta vez o texto resultante da visita à exposição não se debruça sobre essas questões, mas antes sobre o conteúdo das imagens e o quanto desvendam da personalidade e psicologia do seu criador, e que, do meu ponto de vista, constitui a grande contribuição a posteriori desta série gráfica.

Todos os artistas se revelam nas suas criações. De um modo mais ou menos assumido, mais ou menos velado, mais ou menos ousado, mais ou menos hiperbólico qualquer obra de qualquer manifestação artística (Literatura, Música, Pintura, Arquitetura, Escultura, etc) anuncia a alma do seu autor e o seu mundo particular. Partindo deste ponto de vista, acrescentando o facto de Vollard não ter indicado qualquer assunto ou mote quando encomendou este trabalho (abrindo as portas a uma liberdade criativa total) e somando a circunstância de Picasso ter demorado vários anos a concluir a obra, podemos deduzir que estamos perante uma espécie de diário imagético de seis anos e meio da vida de Picasso. Um diário ilustrado de um período intenso, produtivo e cheio de tensões e contradições, divulgador das suas angústias e dos seus fascínios; dos seus gostos e obsessões; das suas muitas características radicais, extremas, excessivas. Porque, efetivamente, está tudo lá.

Passamos de sala em sala, olhamos as composições e vemos a vida de Picasso. Isto é especialmente notório no núcleo de 46 gravuras de “O Atelier do Escultor”.

Esta suite, por exemplo, revela o gosto de Picasso pela estética da Antiguidade Clássica revisitada nas viagens a várias cidades italianas, pela ordem e pela regra do neoclassicismo, que o interessou em vários momentos da sua vida. Um gosto que se evidencia no modo como se organizam algumas composições e pela introdução de todo um vocabulário clássico: togas, instrumentos musicais clássicos, posturas, conjuntos escultóricos clássicos, coroas de flores e de folhagens, certos pormenores decorativos. É igualmente palpável a sua joie de vivre: o amor às artes circenses (uma temática importantíssima no início da sua carreira), à tourada, às mulheres (seres apetecíveis em tantas estampas, de formas voluptuosas e sensuais, oferecendo-se ao amor; ou retratadas como figuras inocentes e ingénuas, abandonadas num sono que as preserva do voyeurismo de homens e seres bestiais). E por falar em seres bestiais, esta exposição apresenta um dos temas incontornáveis de Picasso que, aliás, enquanto motivo recorrente terá aparecido na época em começou a trabalhar na Suite Vollard: o Minotauro. Este ser mitológico, metade homem metade touro, pressupõe desde logo uma dupla condição, evidente na Suite Vollard onde é apresentado quer como paixão carnal que pode roçar a violência e a subjugação da mulher (a violação?), quer como ser frágil e desesperado. Diz-se que o Minotauro seria um alter-ego de Picasso. À luz dessa afirmação, quão interessante é verificar a extensa amplitude emocional espelhada nas ilustrações onde aparece: numa ponta, o monstro que domina e possui, que dá ganas ao seu apetite sexual, que se diverte sem decoro; na outra, o ser diminuído uivando de dor e desespero, dependente da ajuda de uma menina para seguir o seu caminho (= vida). Esta menina, uma menina-mulher, tem o rosto de Marie-Thérèse Walter, 27 anos mais nova do que Picasso, sua amante desde 1927 (a relação terminará em 1936). Mais um tema recorrente na obra de Picasso: as suas musas amantes. Esta menina-mulher, nesta coleção, é inúmeras vezes retratada de uma forma “neoclássica” – linear, depurada, limpa… em claro contraste com o uso de linhas grossas, rebeldes e com sombreados pesados e soturnos de outras composições.

Passamos de sala em sala, olhamos as composições e vemos a vida de Picasso. Isto é especialmente notório no núcleo de 46 gravuras de “O Atelier do Escultor”. Transcrevo algumas das notas compiladas enquanto via as ilustrações deste tema para dar uma ideia do manancial de informação “privada” que Picasso oferece: “O atelier do escultor é um palco; O escultor é omnipresente; O escultor é também escultura; O escultor está sempre nu; O escultor é maior do que o(s) modelo(s); Modelo e escultor não olham um para o outro (raramente); O escultor nunca descansa; Há uma ligação entre modelo e escultor por vezes ilustrada por elementos como flores e grinaldas que os unem; O atelier do escultor como espelho do seu mundo e dos seus interesses (Baco, Minotauro, outras artes, outros artistas); A arte do escultor dentro do seu atelier – o surrealismo, os saltimbancos; as suas criações artísticas são como personagens vivas numa trama onde todos coexistem”.

Servindo-me de algumas delas, componho livremente:

Embora o “Escultor” fisicamente não seja parecido com Picasso (excepto na gravura “Escultor Velho a Trabalhar I), Marie-Thérèse é o modelo primordial e sabemos que ela era exclusiva de Picasso, logo é ele o escultor. O atelier é a sua casa, onde se sente à vontade. No atelier organiza festas, dorme com a modelo, tem encontros com outros artistas e pessoas. Está sempre nu porque está perfeitamente à vontade, não há cerimónias; está como é. O atelier é o lugar da festa e da celebração, do excesso e dos bacanais onde se instala o Minotauro, personagem ambivalente, pois pode ser delicado e vulnerável, mas na maior parte das vezes é lascivo, excessivo e violento. Nesta suite, neste atelier, o Escultor é como um Deus: omnipresente: em muitas das gravuras em que o Escultor não aparece, há o seu busto a marcar a sua presença, a lembrar quem domina no naquele território, naquele atelier; omnisciente: nunca dorme. Mesmo quando à sua volta todos dormem ou estão alienados, em êxtase, ele mantém-se acordado e alerta. Ampara Marie-Thérèse, abraça-a e vela o seu sono. É voyeur, mesmo se através da sua imagem esculpida; e omnipotente: o Escultor é sempre representado numa escala maior do que a modelo ou outras figuras; autorretrata-se como Hércules. (Convido os visitantes a fazerem o mesmo exercício. Seguramente, será gratificante).

“A minha obra é como um diário”, disse Picasso. Esta exposição mostra bem isso. Cem gravuras a apregoarem os episódios, os conflitos, as tensões, os desejos, os medos, as dúvidas e as cóleras vividas num período de seis anos e meio da sua vida. Uma visita atenta oferecerá inúmeras pistas, desafiando o visitante a entrar no labirinto onde este monstro da arte moderna foi rei. E também prisioneiro.

 

Todas as fotografias retiradas do site da exposição.


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Edward Quinn Portrait of Pablo Picasso Vallaurius, France - March 23rd 1953 © Succession Picasso 2019

Informações úteis: 
Pablo Picasso. Suite Vollard.: Até 11 de setembro
Local: Palácio das Artes, Largo de S. Domingos, n.º 19. (Mapa Google)
Horário: de 2ª feira a domingo, das 10h às 20h
Bilhetes: 10€ (5€ para estudantes dos 12 aos 17 anos e maiores de 65 anos) e inclui a oferta de um cálice de vinho do Porto no bar do Palácio das Artes.
Mais informações: Site da exposição I [email protected]

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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