Aparentemente, a pandemia está a pôr em causa o Estado de Direito Democrático, nomeadamente em Portugal, que passou a ser considerada uma democracia com falhas, em vez de democracia plena, segundo o relatório mais recente do The Economist Intelligence Unit (2021). O resultado desta avaliação deve-se, em parte, à redução dos debates parlamentares com o Governo (em decisão unânime com o partido da oposição) e à nomeação pouco escrutinada do presidente do Tribunal de Contas. Como se isso não bastasse, o discurso tem-se tornado cada vez mais fechado quanto à apresentação de alternativas políticas de qualquer grupo partidário, mesmo no seio do Parlamento que é a casa da democracia. Propostas alternativas quanto à gestão da pandemia, ao Orçamento do Estado, ou mesmo à melhoria da nossa democracia são vistas como «pouco patrióticas». Como agravante, por detrás do caos da pandemia encontramos problemas ainda mais enraizados e com consequências bem mais duradouras e profundas, como é o caso da inação climática, que em muito se deve às falhas democráticas tão expostas.
O exemplo mais recente a que assistimos, neste momento, é visível na forma como o Governo português pactua com o partido da oposição para retirar poder aos municípios, no que diz respeito à decisão da construção de um novo aeroporto para Lisboa. Em causa está uma lei que permitiu que a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), com o parecer de dois municípios, indeferisse o projeto do aeroporto do Montijo, assumido pela anterior legislatura, em 2017. Agora, o Governo e o principal partido da oposição pretendem alterá-la para contornar este resultado. Porém, ao contrário do que os decisores políticos com mais poder querem dar a entender, os motivos pelos quais as autarquias e a ANAC se opõem ao aeroporto do Montijo não se devem meramente a «questões municipais»: a questão da avifauna e a própria pista de aterragem perigosamente curta deveriam, por si, ser motivos suficientes de desencorajamento a este projeto. Além disso, no quadro do nosso Roteiro para a Neutralidade Carbónica, não se entende como é que a construção de um aeroporto não contempla a articulação com a ferrovia. Poderíamos ainda questionar, como os especialistas fazem, se o terreno do Montijo estará a salvo da subida dos níveis da água nas próximas décadas. De todas as maneiras, e trocando todos os passos de um processo de decisão regular, o Governo já determinou que existem apenas as alternativas de Montijo e Alcochete para um novo aeroporto e vai proceder à formalidade da Avaliação do Impacto Ambiental, sem qualquer visão estratégica para além do custo zero: em troca de a empresa detentora dos aeroportos de Portugal pagar as infra-estruturas, hipoteca-se a viabilidade a longo prazo desse mesmo projeto. Se nos questionamos por que é que há tanto tempo se fala de um novo aeroporto em Lisboa, sem resultados práticos, a resposta parece estar neste tipo de conduta governativa, pouco regular e pouco fundamentada. Parece sensato não desprezar, em decisões tão estratégicas, os especialistas e o poder local.
Se nos questionamos por que é que há tanto tempo se fala de um novo aeroporto em Lisboa, sem resultados práticos, a resposta parece estar neste tipo de conduta governativa, pouco regular e pouco fundamentada.
Também é necessário mencionar o curto período de consulta pública ao Plano de Recuperação e Resiliência, que, para além de muito pouco específico, é muito fraco – e muitas vezes contraditório – no respeito pelas metas da Transição Verde, como mostrou a Associação Zero no seu comunicado de imprensa do dia 2 de Março. Não podemos tratar da gestão de 16 634 milhões de euros dando menos de 15 dias à sociedade civil para reagir de forma coordenada, de modo a fazer propostas fundamentadas, que é o mínimo que se exige para planos estratégicos e que durarão até 2026. Fica por responder se, ainda assim, serão tidos em conta os 1951 comentários recebidos neste período.
Por fim, e num âmbito internacional, ainda no fim de 2020 tivemos conhecimento de que a Comissão Europeia propõe-se alterar um tratado obscuro e datado, que tem, no entanto, um poder desproporcional, e de que Portugal ainda é signatário: o Tratado da Carta da Energia. Este tratado tem origem na dissolução da U.R.S.S. e na consequente procura de uma política de cooperação energética mais eficaz entre Europa do Leste e Europa Ocidental, baseada nos combustíveis fósseis. Contudo, este Tratado tem servido sobretudo desde 2000 para, ao abrigo de uma cláusula polémica, despoletar ações judiciais de investidores contra Estados, em processos conduzidos em mecanismos de resolução de litígios à margem do poder judicial público. Não raras vezes (60% dos casos) estes processos resultam em avultados lucros para os advogados e para as empresas energéticas, mormente dos combustíveis fósseis.
Ora, enquanto vários países do Sul global se pensam juntar a este Tratado, a solução terá de passar por dar um sinal claro de que esta política de extorsão não pode continuar, muito menos hipotecando o Acordo de Paris de que são signatários a maior parte dos membros deste Tratado.
Os Estados acabam por pagar as indemnizações com o dinheiro público, saindo profundamente desencorajados a assumir as medidas de transição energética. Ora, enquanto vários países do Sul global se pensam juntar a este Tratado, a solução terá de passar por dar um sinal claro de que esta política de extorsão não pode continuar, muito menos hipotecando o Acordo de Paris de que são signatários a maior parte dos membros deste Tratado. A discussão sobre a reforma das cláusulas do Tratado já tem mais de uma década, e a retirada de um Estado-Membro não impede de este ainda ser perseguido judicialmente nos vinte anos seguintes. Por tudo isto, seria urgente abandoná-lo, como a Comissão Europeia aliás já considerou publicamente, mas a que falta respaldo da sociedade civil. Portugal poderia adiantar-se, como Itália, e sair deste barco o mais depressa possível. Para isso, precisa da petição dos cidadãos, que de outra forma pagarão a conta.
Estes são apenas alguns sinais de que vivemos num contexto político profundamente adverso às mudanças de que precisamos urgentemente. A nova encíclica do Papa Francisco fala-nos da importância do reconhecimento da fraternidade para uma política mais democrática que promova o bem comum. Fraternidade, efetivamente, não é omertà, o benefício de alguns à margem da sociedade, que se despreza. A resposta fraterna a estes problemas terá, portanto, de passar por um envolvimento cívico menos avulso e mais organizado. Há que ouvir e participar nas várias organizações da sociedade civil que se preocupam com estas temáticas, que analisam e monitorizam a ação governativa e as decisões políticas que nos afetam diretamente.
Neste caminho que temos de percorrer, há que defender o lugar da sociedade civil e resistir a todas as formas de rebaixamento de que tantas vezes são alvo, como alerta o Papa Francisco (FT 17). Sozinhos, dificilmente iremos a algum lado. Enquanto Igreja, também está na hora de nos questionarmos se estes acontecimentos políticos à nossa volta respeitam o princípio da subsidiariedade, a dignidade da vida humana, o bem comum e o destino universal dos bens comuns, para nomear apenas alguns. Isto não nos obriga a tomarmos todos o mesmo partido, mas obriga-nos certamente a questionarmo-nos e a tomar decisões de modo a proteger os mais indefesos, as gerações vindouras e até a democracia que tanto nos custa a consolidar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.