Francisco, o padroeiro dos migrantes

Durante os 12 anos de pontificado, o Papa foi “Companhia de Migrantes” para aqueles que são frequentemente deixados à margem, nas periferias, nas fronteiras.

Durante os 12 anos de pontificado, o Papa foi “Companhia de Migrantes” para aqueles que são frequentemente deixados à margem, nas periferias, nas fronteiras.

O Papa Francisco foi o primeiro em muitas coisas: o primeiro jesuíta, o primeiro da América Latina, o primeiro Francisco, o primeiro a residir fora do Palácio Apostólico, o primeiro a visitar alguns países – do Iraque à Arábia – o primeiro a abolir o segredo pontifício para casos de abuso sexual e a remover a pena de morte do Catecismo. Mas, certamente, não gostaria que o seu pontificado ficasse conhecido por ter atingido o pódio em algumas metas, mas sim por ter atingido e transformado o coração das pessoas. E conseguiu!

Hoje vemos multiplicarem-se em todo o mundo vigílias, homenagens e missas em memória do Papa Francisco, ouvimos os sinos tocar em vários continentes, sentimos as orações ecuménicas de vários líderes religiosos e as mensagens de pesar de todos os quadrantes políticos.

Foi um líder carismático, inspirador e universal, que veio “quase do fim do mundo” para aproximar o mundo, tornando-o mais justo, misericordioso e fraterno.

Durante os 12 anos de pontificado, teve como prioridade “Caminhar junto aos Pobres, os descartados do mundo, os violados na sua dignidade” (segunda preferência apostólica universal da Companhia de Jesus), em especial, os migrantes e refugiados. Foi “Companhia de Migrantes” para aqueles que são frequentemente deixados à margem, nas periferias, nas fronteiras.

Rompeu o silêncio e foi voz dos que ficaram sem dignidade, sem casa, sem pátria. Deixa-nos um legado cheio de palavras, mensagens, encíclicas (nota 1) e até 4 verbos em defesa das pessoas migrantes (nota 2). Mas o maior testemunho foi a profundidade espiritual vivida nos seus gestos, que hoje continuam a desafiar-nos.

Neto e filho de migrantes, escolheu como primeira viagem fora de Roma uma visita à ilha de Lampedusa, onde lançou uma coroa de flores ao mar, cemitério de milhares de migrantes, e denunciou “a globalização da indiferença” que nos “torna a todos «inominados», responsáveis sem nome nem rosto”, pedindo “ao Senhor a graça de chorarmos pela nossa indiferença” (nota 3).

A denúncia também se repetiu nas duas viagens a Lesbos, pelos contentores e tendas de refugiados e deslocados, de onde regressou, em 2016, com três famílias de refugiados sírios.

Visitou inúmeros centros de acolhimentos e campos de refugiados em viagens apostólicas (ex. Marrocos, Mianmar, México, Chipre), onde demonstrou a sua dor e nos continua a desafiar: “não queremos que a indiferença e o silêncio sejam a nossa resposta” (nota 4).

Num dos momentos mais marcantes na visita ao México, em 2016, o Papa Francisco rezou em frente a uma cruz branca erguida à beira-rio, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. A cruz estava rodeada por sapatos velhos e sandálias, simbolizando os migrantes que perderam a vida a tentar cruzar a fronteira. O Papa depositou flores e abençoou os dois lados da fronteira, realizando, em  seguida, uma missa transfronteiriça, com profundo significado simbólico e pastoral, na presença de milhares de migrantes.

Num dos momentos mais marcantes na visita ao México, em 2016, o Papa Francisco rezou em frente a uma cruz branca erguida à beira-rio, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. A cruz estava rodeada por sapatos velhos e sandálias, simbolizando os migrantes que perderam a vida a tentar cruzar a fronteira.

Em 2019, na Praça de São Pedro, durante a celebração do 105.º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, o Papa Francisco inaugurou a escultura “Anjos Inconscientes”, com 140 figuras de migrantes, inspirada na passagem bíblica “Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos” (Hb 13, 2).

Por fim, “escolheu” como último encontro do seu pontificado, uma reunião com o vice-presidente dos  Estados Unidos, J. D. Vance, onde manifestou a sua preocupação pela deportação em massa de migrantes.

Contra as políticas dos muros e deportações, o Papa Francisco deixa-nos o testemunho e o exemplo vivo de uma “cultura do encontro”, onde nos relembra que os migrantes “são mulheres e homens, jovens e raparigas que não são diferentes dos membros das nossas famílias e dos nossos amigos. Cada um deles tem um nome, um rosto e uma história, assim como o direito inalienável de viver em paz e de aspirar por um futuro melhor para os próprios filhos”. E desafia-nos a ser “corajosos ao responder às necessidades dos refugiados no tempo presente. (…) É necessário que ofereçais ao Senhor «toda a  vossa liberdade, a vossa memória, a vossa inteligência e toda a vossa vontade»” (nota 5).

Para aqueles que trabalhamos diretamente com migrantes, como no Centro São Cirilo, o Papa Francisco é uma fonte inesgotável de inspiração. O seu testemunho incansável na defesa da dignidade humana e dos direitos dos migrantes motiva-nos, cada dia, a seguir a nossa missão, muitas vezes invisível, cansativa e socialmente impopular.

Com os seus gestos, somos desafiados a olhar para os olhos de quem sofre; a escutar antes de julgar; a acolher antes de fechar fronteiras — geográficas, sociais, espirituais ou culturais. Somos chamados a “aliviar o sofrimento dos migrantes, para salvá-los, acolhê-los e integrá-los” (nota 6). Somos desafiados a viver uma fé que atravessa muros, que constrói pontes, que é o evangelho encarnado! Papa Francisco, roga por nós!

Perdemos um Papa mas ganhamos, certamente, mais um padroeiro dos migrantes…com cheiro a  ovelha!

 


As Preferências Apostólicas Universais (PAU) da Companhia de Jesus são fruto de um profundo processo de discernimento, realizado ao longo de quase dois anos e envolvendo jesuítas e colaboradores. Confirmadas pelo Papa Francisco num encontro com o Padre Geral Arturo Sosa, estas quatro preferências constituem um horizonte comum para a missão da Companhia nos próximos anos. Procuram responder aos desafios mais urgentes do nosso tempo e renovar a presença da Igreja no mundo, através de uma colaboração mais plena com a missão de Cristo. As PAU propõem: mostrar o caminho para Deus mediante os Exercícios Espirituais e o discernimento, ajudando a Igreja a ser sinal do Evangelho numa sociedade secular; caminhar ao lado dos pobres, excluídos e vítimas de injustiça, numa missão de reconciliação; acompanhar os jovens na construção de um futuro com esperança, reconhecendo-os como lugar teológico; e colaborar no cuidado da Casa Comum, assumindo a responsabilidade partilhada pela criação. Estas preferências não são apenas diretrizes: são um apelo à conversão, à escuta e ao compromisso ativo com o mundo e com o Evangelho.

 

Nota 1 – Fratelli Tutti e Evangelii Gaudium

Nota 2 – Os nossos esforços a favor das pessoas migrantes que chegam podem resumir-se em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar (Fratelli Tutti, capítulo IV “Um Coração aberto ao Mundo inteiro”, nº 129)

Nota 3 – Homilia do Papa Francisco, Lampedusa, 8 de julho de 2013

Nota 4 – Encontro com os Migrantes, Rabat, 30 de março de 2019

Nota 5 – Discurso aos participantes na conferência promovida pela Confederação Europeia e a União Mundial dos ex-alunos e alunas dos Jesuítas,  Roma, 17 de setembro 2016

Nota 6 – Audiência com ResQ – People Saving People, uma ONG italiana dedicada ao resgate e assistência de migrantes que atravessam o Mar  Mediterrâneo, Roma, 11 de dezembro de 2024

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.