Lembro-me da aula em que percebi o que a democracia é, e o que a democracia não é, mas muitos lhe exigem que seja. Na essência, a democracia não é mais do que aquilo que promete a origem etimológica da palavra: o governo do povo. Tem a ver com a força da maioria, e não com a proteção de minorias, ou de direitos iguais para todos, ou de liberdades que todos possam exercer – isso é outra coisa: é a democracia liberal. Não deve ser confundida com a democracia original. São, aliás, contraditórias. A democracia é, na sua origem, iliberal. A democracia também não é um sistema económico, e ainda menos uma receita para a prosperidade – mas carrega esse fardo, na medida em que é vítima do seu sucesso. A decisão descentralizada, a partir de uma multiplicidade de agentes económicos, permitiu que a generalidade das democracias liberais, com capitalismo mais ou menos regulado, tenha alcançado bons resultados económicos, tirando milhões da pobreza (em qualquer caso, resultados bastante melhores do que nos regimes autoritários socialistas, sem liberdade de iniciativa e com as decisões – políticas e económicas – concentradas apenas no Estado).
Em traços largos a História recente foi assim até à grande crise de 2008. Esse foi o momento de viragem, que abalou a vida de milhões, levou governos a alocar recursos colossais para salvar o sistema financeiro (desviando-os das funções do Estado), e confrontou sociedades inteiras com uma realidade que parecia passado: após muitas gerações em que os filhos tinham a perspetiva de viver melhor do que os pais, pela primeira vez em muito tempo essa garantia não existe. Pelo contrário.
“A crise” criou legiões de esquecidos – os que foram deixados para trás, os que viram as suas expectativas traídas, os que acreditaram e deixaram de ter razões para tal. Os que perderam empregos, os que perderam casa, os que perderam rendimentos, os que perderam a previsibilidade e a segurança nas suas vidas. Os que perderam o seu lugar na economia e o poder que isso lhes trazia.
“A crise” criou legiões de esquecidos – os que foram deixados para trás, os que viram as suas expectativas traídas, os que acreditaram e deixaram de ter razões para tal.
Em contrapartida, muitos redescobriram que tinham poder político. A mesma classe média que ficou esquecida pela economia redescobriu a sua força política nos números, pois são muitos, e na tecnologia, pois voltou a ter voz. E essa voz diz-nos que há muita gente zangada e à procura de quem possa culpar: o sistema, a democracia, os políticos, os media, a globalização, os outros países, os outros povos. Os outros.
A revolta talvez tenha existido sempre, ainda que em surdina, mas ganhou visibilidade e essa visibilidade trouxe-lhe poder. As redes sociais permite visibilidade para todos – a invisibilidade é o purgatório dos tempos modernos. A comunicação já não se faz só de cima para baixo, faz-se de baixo para cima, e para os lados. Saiu do mundo virtual e chegou às ruas. People have the power.
O poder não admite vazios e pede protagonistas. O bruááá inorgânico das redes e das ruas cria novos líderes, que dão voz à revolta em horário nobre, a amplificam, a alimentam e se alimentam dela. A grande vingança dos “deploráveis” zangados foi eleger outro deplorável, igualmente zangado, para o topo da pirâmide.
Vinte-vinte será o ano do tira-teimas: Donald Trump foi um acidente ou é uma tendência? A resposta será exclusivamente americana, mas dirá muito sobre o mundo que nos espera a todos. Novembro será o mês mais importante do ano. Talvez de muitos anos. O fim das ambiguidades e ilusões, da mesma forma que a vitória de Boris Johnson enterrou de vez a efabulação sobre resultados alternativos de um segundo referendo ao Brexit. Não é verdade que o povo não se engane – mas não se engana duas vezes.
Há más notícias para eles. E para todos nós. O mundo que se perdeu não voltará.
A reeleição de Trump será o triunfo da democracia, da demagogia e do populismo no país mais influente do mundo. Será também a derrota da democracia liberal. A grande base eleitoral de Trump não quer a proteção das minorias, nem direitos, liberdades ou garantias iguais para todos. É uma base tribal, alimentada pela rejeição do que é diferente e mobilizada pela culpabilização dos outros.
Há más notícias para eles. E para todos nós. O mundo que se perdeu não voltará.
Uma guerra comercial até pode garantir que a fábrica deslocalizada volte à terriola do Midwest onde antes existiu. Mas provavelmente voltará mais informatizada e robotizada, com menos postos de trabalho. Os robôs não vão substituir os humanos, pelo menos não todos, e não para já. Mas vão começar por substituí-los nas tarefas menos qualificadas, que são aquelas onde a classe média e média-baixa mais perdeu empregos por conta da globalização, primeiro, e da grande crise de 2008, depois. Esse é o ponto: boa parte desses empregos não voltará. A robotização e a inteligência artificial vão continuar a precisar de humanos, mas cada vez mais qualificados e com maior capacidade de atualização e mudança. Quem já ficou para trás dificilmente voltará a saltar para o comboio. Será mais difícil canalizar a culpa e o ódio quando a “culpa” já não for “dos chineses”, ou “dos mexicanos”, mas de zeros e uns. E de braços mecânicos. E de inteligência artificial. Parece ficção científica? Não é.
O efeito da robotização e da IA sobre as nossas democracias é difícil de calcular, mas será colossal, na medida em que engrossará muito depressa o número dos que perderam o seu lugar na economia. Talvez esteja a ser pessimista, mas temo que os excluídos e os deixados para trás por estas alterações tecnológicas tenham o potencial de afundar as democracias liberais num caldo de raiva e ressentimento.
O efeito da robotização e da IA sobre as nossas democracias é difícil de calcular, mas será colossal, na medida em que engrossará muito depressa o número dos que perderam o seu lugar na economia.
O entorse democrático que já é provocado pela manipulação das redes sociais, pelo alinhamento tribalista de alguns media mainstream, e pelo isolamento dos seus utilizadores em círculos fechados, com cada vez menos capacidade de ouvir os outros, é só o primeiro sintoma de uma nova era de radicalização, extremismo e recusa do compromisso.
Basta que a raiva e a frustração sejam convenientemente acicatados por populistas e demagogos com discursos cada vez mais eficazes e cirurgicamente direccionados. Se as máquinas de propaganda já têm uma capacidade assombrosa de vender realidades alternativas a grupos específicos de eleitores, imagine-se essa capacidade multiplicada pela IA.
Cambridge Analytica é pré-história em comparação com o potencial do que aí vem. A quantidade de informação que cada um dá (voluntariamente ou não, através de mecanismos de vigilância cada vez mais sofisticados) tornará mais fácil manipular milhões de cidadãos, cada um a ser tocado nos seus nervos mais sensíveis – os seus medos, anseios, preconceitos e desejos. E a capacidade de lhes direcionar informação e todo o tipo de estímulos será infinita com o desenvolvimento da IA (e o passo seguinte, a computação quântica). Será só uma questão de influenciar o sentimento certo para condicionar a compra seguinte, a opinião seguinte, o voto na eleição seguinte.
Para regimes autoritários, serão novos instrumentos tecnológicas para cumprir mais um dia no escritório – nada de novo, só muito mais eficácia. Mas mesmo para regimes democráticos será uma tentação difícil de resistir.
Não é preciso imaginar muito. Em parte essa já é a nossa realidade em 2020. Feliz mundo novo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.