Agora que o ano letivo está a recomeçar, um alinhamento de astros, ideias e situações, que na ampulheta divina se eleva à qualidade de providência, têm-me levado a pensar na arte de saber ler. O início do ano requer esta arte! Ler bem o coração, as situações, os movimentos internos e externos das vontades e aí intuir caminhos novos ou a frescura dos caminhos outrora assumidos.
‘Era uma vez’ e a promessa contida nos [re]inícios
Por mais que tente recordar o dia em que aprendi a ler e escrever, há algo de muito indeterminado nesse início. Terá havido um click, suponho, de passar de copiar formas ao pensar: eu escrevo. Mas sinceramente não recordo esse click. Quando penso em aprender a ler e escrever recordo os ditados na escola. A escuta pausada que nos introduziu à arte dos copistas, como mini monges a deixar o mundo aflorar como como catedrais de sentido, como mundo que se humaniza ao ritmo lento da narração.
Aqueles inícios eram quase rituais. Ouvíamos: Era uma vez… e apressavamo-nos a escrever que algo foi uma vez. E assim começaram tantas histórias. De amor ou ódio, de alegria ou tristeza, de aventura ou tragédia… Tudo aquilo que se veio a tornar nalguma coisa, já foi uma vez algo com um princípio. “Todo o mundo foi neném”, cantaria a Adriana Calcanhoto.
Há, de facto, algo de muito especial nos inícios que contém toda a força e potencialidade do futuro. Tal como dentro da bolota já se encontrava um carvalho possível e dentro da noz um sonho de nogueira, é também no regresso aos inícios que encontramos as sementes do futuro. “Quem virá a ser este menino?” Esta pergunta, feita acerca do pequeno são João Batista, reverbera em cada início que percorremos. Desde o início de um livro, com os seus odores exalados ao ritmo do folhear, até ao maravilhoso início de uma vida, por mais indigente que nos possa parecer, até ao jovem congolês que arroja sem medo nas perigosas vallas de Ceuta ou Melilla à procura de um futuro melhor: o princípio aparece carregado de mistério, risco e profundidade. É mais do que o tempo exato do começo ou recomeço. É o mistério do “quem virá”? É o cruzamento das liberdades, do passivo e do ativo, do um e dos muitos. Que posso esperar quando tudo me está simultânea e irremediavelmente prometido e por vir? Que me é permitido esperar deste ano?
É preciso ler tudo, ver o argumento a desenvolver-se. É preciso padecer a lentidão.
Maieutica e o “outro” do texto/vida
Quando ponderamos os nossos inícios podemos cair no risco de ler com demasiada pressa. Ora porque o mundo nos impõe tal pressa ora porque o nosso interior reclama: já, já, já! Recordo com tanta gratidão o dia em que o professor Manuel Sumares, venerável tanto na cor da barba como na qualidade das palavras, nos disse no seu estilo lacônico e profundo: “Não acredito no “Kant em noventa minutos”. É preciso ler tudo, ver o argumento a desenvolver-se. É preciso padecer a lentidão”. Que pérola! Para que o início valha a pena é preciso estar disposto a padecer a lentidão.
No mesmo sentido, num Banquete, Sócrates fez um elogio inesquecível à sua mãe. Como parteira (maieutikè) ela era o modelo de amor e auxílio ao nascimento ― ao qual a nossa humanidade pode estar sempre sujeita, se desejar crescer continuamente. Nas suas Confissões, Agostinho de Hipona afirmou que a sua mãe o deu à luz várias vezes ao longo da vida. Não se trata de um nascimento rápido, mas de um modo unificado de ver nos diversos passos um único caminho, processualizando a informação – se me permitem o neologismo.
Contra todas as pressas, a leitura lenta da vida e dos textos, permite que se gere em nós um algo novo, um recomeço que se expanda para além das medidas do espaço e do tempo. Nas palavras do poeta e teólogo Kevin John Hart: “ler devagar não se resume a uma técnica para extrair mais do texto ou para desconstruir os seus pressuspostos; é antes uma resposta à alteridade do próprio texto”. E se o que aqui se diz do mundo do texto se aplicar também à vida e aos seus começos? E se à medida que construímos os textos, interpretando as suas ambiguidades e amando as suas possibilidades, nos estivéssemos a deixar construir e definir como leitores que vivem e amam, escolhem e sofrem, cantam lamentações e encontram motivos para festejar…? E se a arte de ler devagar fosse a arte de transformar tanto o livro como o leitor, tanto a cultura como a pessoa?
E se a arte de ler devagar fosse a arte de transformar tanto o livro como o leitor, tanto a cultura como a pessoa?
Exercícios para aprender a ler devagar
Para ajudar a imaginar esta arte de ler devagar, proponho aqui uns breves exercícios práticos que nos poderão ajudar a exercitar esta arte. Podem ser adaptados de acordo com as possibilidades e responsabilidades de cada um.
- Todos os dias, antes de sair ou quando regressar a casa, ler devagar uma página de um livro. Cuidar da lentidão e não querer passar de uma página, a não ser que seja para terminar uma frase ou parágrafo.
- Dar três passos de cada vez que leio um livro que merece lentidão na leitura: 1. Reler – reler é mais do que ler duas vezes, é dar o benefício da dúvida ao que lês, estar disposto a reler o teu mundo no mundo que o autor escreve na tua compreensão; 2. Relacionar – quando alguma ideia ou imagem te impressiona, não passes adiante, mas relaciona ponderada e lentamente o que vives e o que lês desde várias perspetivas até te parecer que bebeste todo o sumo que tinhas para receber; 3. Reposicionar – que atitudes, ideias ou passos te sentes impelido a acolher depois de ler aquele trecho?
- Toma consciência, quando lês se o ritmo da tua leitura é um reflexo do teu modo de estar e pergunta-te: é assim que quero viver este dia?
Antes de pegares num livro, pensa em todas as pessoas que te ajudaram a aprender a ler, a saber ler bem, e agradece a Deus a sua presença na tua vida.
Com o passar do tempo vai-te perguntando: de que modo ler devagar tem trazido alguma coisa ao meu modo de viver? Se Jesus me perguntasse como perguntou ao doutor da Lei, “Como lês tu?” (Lc 10, 26), que lhe responderia?
Senhor, dá-nos a graça de aprender a ler o essencial da vida, a ler ao ritmo da realidade, na qual nos dás a conhecer o teu coração
Se quiseres, neste início de ano, podes rezar esta oração com todos aqueles que desejam aprender a ler bem mais um ano que nos é dado:
Senhor, dá-nos a graça de aprender a ler o essencial da vida, a ler ao ritmo da realidade, na qual nos dás a conhecer o teu coração. Escolheremos assim o novo lugar, ali onde nos encontramos em olhar e desejo de recomeço. Sabemos que tudo o que nos prometes é impossível de ser lido sem ti. Por isso te necessitamos ao nosso lado, diante de nós, sobre nós, atrás de nós e dentro de nós. Caminha connosco, Senhor, e ensina-nos a ler. Neste ano que recomeça, não nos permitas receber nenhuma graça quando tentarmos ler a vida à pressa, passar os olhos pelas pessoas como se fossem assuntos ou esquadrinhar a Escritura como se fosse uma coisa que justifica ideias que já decidimos serem importantes à partida. Nesses momentos dá-nos apenas graça do arrependimento, o desejo de reaprender a ler, de desacelerar o ritmo voraz da leitura para nos reposicionarmos e aprendermos de ti, o leitor infinito. Livra-nos das pressas! Ensina-nos a ler devagar, a aguentar a corrente dos processos, a regozijar com o simples rumor do que está por vir, a apreciar o desinteressante como promessa, o despojado como riqueza oculta e a mudança como condição de perfeição. Porque na ampulheta divina é lento o tempo das coisas que crescem para a eternidade. Ámen.
Fotografia de: Lilly Rum – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.