Recordamos e celebramos há poucos dias, no dia 27 de setembro, a aprovação da criação da Companhia de Jesus pelo Papa Paulo III, em 1540, através da Bula Regimini militantis Ecclesiae. No ano anterior, em 1539, encontrando-se por altura da Quaresma, o grupo dos chamados “primeiros companheiros” – Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Pedro Fabro, Simão Rodrigues, Bobadilla, Alfonso Salméron, Diego Laínez, Broet, Claudio Jayo e Juan Codure –reuniam-se em Roma para discutir, antes de se separarem, aquilo que lhes dizia respeito relativamente ao chamamento primeiro de Deus e ao modo de vida que daí decorreria.
A reflexão seria traduzida numa questão, muito clara:
Este grupo, deverá ou não deverá formar um único corpo?
Dito de outra maneira:
Estando eles já consagrados a Cristo Senhor e disponíveis ao Seu verdadeiro e legítimo representante na terra (para que dispusesse deles conforme entendesse), qual seria a melhor opção para o seu modo de vida: unidos, entre si, estreitamente num só corpo?
Caso fosse afirmativa a resposta (formar um corpo), afigurava-se nova pergunta:
Deveriam, então, submeter-se à obediência a um de entre eles?
Embora o desejo que coabitava nos corações destes primeiros companheiros e que os levou a reunirem-se em Roma, fosse o mesmo – a de sujeitar os interesses pessoais ao louvor, honra e glória de Deus que se traduziria numa vontade em si boa, conveniente e a mais perfeita – as opiniões, no entanto, sobre os meios para atingir esta mesma finalidade, divergiam. Talvez pelas circunstâncias, culturas, origens, nacionalidades ou, até mesmo, por um bom desejo, mas apressado de alcançar a vontade, estes homens mesmo dedicados à oração e à reflexão prolongadas, não conseguiam chegar a uma solução final.
Diante deste cenário curioso – acordo mútuo na finalidade, mas divergência no que toca aos meios, ao modo de atingir o fim – decidem criar um “preâmbulo” como boa porta de entrada para o início de um discernimento feito em conjunto. É necessário ganhar distância afectiva sobre a questão. Cada um deverá dar-se conta que é preciso liberdade afectiva, não só para começar bem, como para levar a bom termo o discernimento começado.
Salvaguarda-se, por isso, em cada um, três atitudes prévias para que a vontade de Deus não seja contornada, contorcionada ou viciada. A saber: a abnegação pessoal, o silêncio e o desapego (liberdade).
Sem estes três princípios que presidiam o início, o encontro com a vontade de Deus seria, permanentemente, adiado.
Assegurada esta “boa vontade” e clarificada a adequada disposição interior, cada um estaria agora chamado a dedicar-se ainda com maior fervor, do que já era habitual, à oração, à eucaristia e à meditação, para poder expressar, individualmente e em liberdade, aquilo que era o parecer de cada um.
No entanto, o processo só estaria concluído, quando eles recebessem a confirmação de alguém exterior e “estranho” ao grupo. Neste caso, a aprovação ou não aprovação por parte da Santa Sé.
Organizados os seus dias, durante o dia tempos de oração, reflexão e de meditação e à noite a expressão individual daquilo que lhes parecia ser o mais conveniente, este grupo pretendia, numa atitude orante de exame e de avaliação permanentes, chegar a um acordo pelo critério da consolação espiritual.
Chegaram, por isso, a uma primeira e decisiva constatação:
“Já que o Senhor (no seu amor e misericórdia) nos reuniu para nos relacionarmos, não devíamos quebrar os laços deste grupo criados e mantidos por Deus, mas continuar a fortalecê-los, dar-lhes estabilidade e reunindo-nos num só corpo”. De um corpo, assim, unido, decorreria maior dinamismo e consistência nos momentos difíceis, mas sobretudo maior eficácia (no sentido de fecundidade apostólica) no seguimento e cumprimento da vontade de Deus.
Salvaguarda-se, por isso, em cada um, três atitudes prévias para que a vontade de Deus não seja contornada, contorcionada ou viciada. A saber: a abnegação pessoal, o silêncio e o desapego (liberdade).
Já consagrados pelo voto da castidade e da pobreza, estes homens perguntavam-se, agora, pela pertinência da obediência.
É necessário obedecermos a um, entre nós, para em tudo realizarmos a vontade do Senhor?
Posta a esperança no Senhor para encontrarem o meio (modo de vida) mais conveniente, perguntaram o que seria mais adequado ao discernimento: se se retirariam de Roma por 30-40 dias, em regime de total meditação, jejum e penitência ou, se pelo contrário, três ou quatro, em nome de todos, se retirassem?
Optaram por uma terceira via.
A saber: ficariam em Roma. Consagravam uma parte do dia à meditação, reflexão e oração e a outra parte, ao ofício apostólico próprio deste tempo e lugar: a pregação e o sacramento da confissão. E, isto, por duas razões curiosas: a primeira, para evitar boatos, não fossem as pessoas julgar que tinham fugido, dado que é próprio do homem pronunciar-se, superficialmente, sobre tudo o que acontece; e, depois em segundo, para que esta eventual ausência não trouxesse mazelas nos bons e abundantes frutos que se geravam, graças ao seu trabalho apostólico levado a cabo em Roma.
Portanto, ficariam em Roma, dedicados à oração e ao trabalho, seguindo o seguinte método:
1- Dedicação à oração, Eucaristia e meditação, esforçando-se cada um por se inclinar mais para obedecer do que para mandar.
2- Não falassem nem perguntassem entre si pelas razões de uns e outros, de maneira a anular a possibilidade de influência de opiniões.
3- No momento indicado, cada um encarregar-se-ia de expor (decorrente da reflexão, meditação e oração) as objeções contra o voto da obediência.
4- Passados poucos dias, comunicar o contrário. Ou seja, as vantagens da obediência (ou, se quisermos as consequências negativas da não obediência).
Decorrido este tempo, penso que aproximadamente 3 meses, e depois muita oração, vigília, meditação, reflexão, fadiga espiritual e, inclusive, corporal, todos concluíram que, para desejar e realizar a divina vontade, melhor assegurar a união do grupo e melhor atender os problemas temporais e espirituais, seria mais conveniente prestar obediência a um de entre eles.
E pelas seguintes razões:
– nada abate tanto o próprio orgulho e a arrogância, como a obediência
– crescer no heroísmo de executar, renunciando à própria opinião e vontade
– seria tal a absorção pelos trabalhos espirituais e temporais, que só a obediência poderia favorecer a união, coesão e permanência do grupo
Nota: brevemente publicaremos a segunda parte deste texto em que o P. Nuno Branco fará a tradução do método aqui seguido para a vida prática e concreta do nosso dia a dia.
Fotografia de destaque: João Ferrand/Companhia de Jesus – Pintura de Domingos Gouveia, Aprovação da Companhia de Jesus pelo Papa Paulo IIi – Sé Nova, Coimbra.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.